Pandemia e fracasso econômico na América Latina e no Brasil

novembro 15, 2020.

Vitor Pinto.

Cartazes de rua pedindo testes de covid e caricatura de politico com olhos vendados

Foto de Jade Scarlato em Unsplash

A crise na economia em época de pandemia na América Latina (AL), quando vista sob um enfoque independente do exterior, mostra sua face mais negra e não deixa dúvidas quanto à violência dos impactos sofridos. Recentemente matéria do jornal espanhol El País informou que “o retrocesso observado é o maior nos últimos 120 anos”, acrescentando que pelos critérios da Cepal, organização pertencente à ONU, a região perdeu dez anos em termos econômicos e quase quinze anos em termos sociais.

A Covid-19 tem números espantosos que, no entanto, já não comovem os corações dos dirigentes e políticos regionais. Para um total de 54 milhões de casos no mundo todo, os cinco países mais afetados da AL – pela ordem Brasil, Argentina, Colômbia, Peru e México – contribuem com 19%, ou 10,26 milhões (sendo brasileiros 11% dos casos), sem sinais de arrefecimento no horizonte. Esta é a pior crise de todas e se deve, em essência, a fraquezas estruturais, ou seja, é extremamente agravada por debilidades cujas raízes são intrínsecas ao que se passa nas Américas ditas “em desenvolvimento”.

Diagnóstico econômico

O que se segue está baseado em análises desenvolvidas pela Cesla (Círculo de Estudios Latinoamericanos, da UNAM – Universidade Autônoma de Madri e Universidade Rei Juan Carlos) em publicação de novembro de 2020 – Cesla.com. É apresentado em tópicos para facilitar sua compreensão.

  • A paralisação de atividades afetou gravemente as economias latino-americanas no 1º semestre de 2020 quando foram perdidos 8 anos de produção, afetando principalmente os países com menor dinamismo econômico. Foi o que aconteceu com Rep. Dominicana, Paraguai, Honduras, Guatemala, Costa Rica, Peru e Bolívia.
  • O Peru perdeu 9 anos de produção, apesar de ser um dos países mais dinâmicos. O setor de serviços é determinante e a indústria sofreu queda de 40%, mas foi o turismo que mais sofreu.
  • As economias de Argentina e México foram fortemente afetadas pela Covid-19 com uma quinta parte de sua produção perdida no 1º semestre
  • Os países de pior desempenho, Brasil e Argentina, já haviam decrescido 0,5% ao ano entre 2013 e 2019, mas El Salvador, México, Chile, Uruguai, Belize, Jamaica e Equador que vinham crescendo a taxas inferiores a 3% alcançaram uma expansão inferior a 1% neste mesmo período.
  • México e Argentina sofreram muito com o fechamento de suas inter-relações comerciais com o exterior, mas especialmente nesta o agravamento de problemas prévios teve um peso muito significativo na crise, fenômeno que se repetiu no caso brasileiro.
  • As três maiores economias da região perderam em média 10 anos de produção.
  • Jamaica é o caso pior, com uma queda de 24% na produção, sem intervenção pública.
  • Em média a América Latina perdeu oito anos de produção enquanto a China apenas um, Estados Unidos seis e União Europeia onze. China, Europa, Argentina, Colômbia, Bolívia, Equador, El Salvador, Honduras, Paraguai, Peru e República Dominicana impuseram quarentenas obrigatórias. Panamá impôs restrições de saída do país por gênero, enquanto Chile, Cuba e Guatemala o fizeram por zonas. No Brasil e nos Estados Unidos os estados definiram diversas quarentenas. Costa Rica, México, Nicarágua e Uruguai aplicaram recomendações governamentais para distanciamento social.
  • As políticas de prevenção de contágios têm sido fortemente condicionadas pela economia nas últimas décadas. Quando a dinâmica econômica é baixa, uma pequena queda provoca uma grande contração. Há dois casos especiais – Peru e Honduras – que saem deste padrão, pois em ambos tem forte peso a informalidade e o setor de turismo respondeu de forma muito desfavorável.

O caso do Brasil

Esta síntese tem como referência o texto “Crise no Brasil: econômica, sanitária e política” do professor de economia da PUC/SP Rubens Saraya, também publicada pela Cesla em seu último boletim.

Os dados sobre a pandemia no Brasil não são confiáveis, não há como realizar os testes necessários e muitos estão morrendo sem ser possível saber se foi da doença ou não. A incapacidade financeira e operacional dos Estados em testar vem do bloqueio financeiro do governo federal e da falta de recursos devido à crise econômica que já assola o país há 5 anos. Há desinteresse do Governo Federal em mostrar o verdadeiro volume de mortos e infectados. Estima-se que o volume real de mortos seja de 4 a 6 vezes maior se considerada a elevação média no número de enterros nos cemitérios. O Presidente da República está muito mais interessado em negar a existência da Pandemia do que em combatê-la.

O isolamento social é baixo por conta das tímidas medidas econômicas adotadas para minimizar o impacto sobre o emprego e a renda, fazendo com que muitas pessoas tenham de fato que trabalhar. A principal preocupação do presidente tem sido o fracasso em termos de crescimento econômico diante do que havia sido prometido por seus economistas. Venderam o ajuste fiscal como solução milagrosa focado no corte das políticas sociais, reforma da previdência, flexibilização do mercado de trabalho, privatização e outras políticas que nunca entregaram. Depois de dois anos de queda no PIB (acumulando -7,5%), a economia estava estagnada com crescimento em torno de 1%. A taxa de desemprego já era elevada antes da pandemia e, depois de baixar para 11,5%, voltou a superar 12%. Mesmo antes da pandemia, 83% dos trabalhadores (população economicamente ativa é cerca de 100 milhões) estava em situação vulnerável com quase metade na informalidade. Cerca de 80% da população ocupada brasileira é considerada pobre e muito pobre.

Sistema de saúde se mantém

A sorte dos brasileiros foi que, nos últimos 5 anos, os governos – inclusive o atual – não conseguiram desmontar o sistema público de saúde universal como desejavam as políticas de cortes de gastos. O que restou dele, apesar de estar no limite, é o que impede um número maior de mortos, principalmente de baixa renda, de pessoas que não teriam como pagar por assistência de saúde privada. As estatísticas confiáveis ainda não estão disponíveis, mas percebe-se que o volume de atingidos pela pandemia concentra-se cada vez mais nessa população dada a já muito precária condição de existência (habitação, disponibilidade de água e esgoto). O Presidente, iludido com o ajuste contracionista vendido como “expansionista”, contava com crescimento econômico para garantir sua popularidade. Esta é a única explicação para a posição de negação da pandemia pelo presidente. A Pandemia não apenas atrapalhou a ilusão do crescimento, mas agravou a crise econômica diante da relutância do governo em abandonar as políticas contracionistas.

Espera-se uma queda de cerca de 5% no PIB para este ano, mas pode ser maior diante da ação insuficiente do Governo Federal em preservar a renda e o Emprego. Como se não bastasse a crise econômica que já se desenrola por 5 anos, agravada pela crise de saúde provocada pela pandemia, o Brasil vive uma enorme crise política. A crise política não é resultado específico da pandemia, mas as atitudes do presidente diante dela agravam a situação. Também não é resultado da disputa entre a flexibilização da política de austeridade e o ajuste fiscal, dado que, pelo menos neste momento, grande parte dos economistas, mesmo aqueles que apoiam as políticas de austeridade do Ministro, são a favor de elevação de gastos públicos para não deixar a economia mergulhar em uma crise mais profunda. A crise política funda-se nas ações concretas do presidente que o tem isolado cada vez mais de seus aliados políticos e das elites que o apoiam. Desde o início de seu mandato, o presidente demonstra que quer poderes incondicionais.

As elites dominantes no Brasil sempre viram o presidente com alguém que atrapalha por sua total inabilidade. A já costumeira ação truculenta e ignorante do presidente, ainda mais agora durante a crise de saúde, soma-se à pressão que vem exercendo para centralizar o poder em torno de si. Atacou os poderes legislativo e judiciário em praça pública ameaçando fechá-los. Esse movimento tornou clara a necessidade e oportunidade de lhe retirar poder ou até de entrar com um processo de impedimento contra ele. O ex-juiz e agora ex-ministro Moro tornou-se o pivô desse processo político, em certa medida em aliança com parte do poder judiciário e legislativo. Se a crise aberta conseguir diminuir a popularidade do presidente que gira em torno dos 30% - formada de apoiadores radicais e violentos –, talvez encaminhem um impeachment; caso contrário, o objetivo será enfraquecê-lo de modo a garantir seu afastamento no pleito eleitoral em 2022. O apoio quase que incondicional de parte da mídia à ação do juiz não deixa dúvidas sobre esses objetivos.

Medidas frente à pandemia

Por pressões, principalmente da oposição, o governo criou a política de pagamento de US$120,00 para cerca de 50 milhões de mais necessitados – precarizados da parte de baixo da pirâmide. Surpreendeu-se com muitas pessoas que nem sabia da existência porque não têm documentos ou conta em banco. Filas se formaram diante das agências de pagamento num movimento arriscado dada a possibilidade de contágio. Isso demonstra o grau de precariedade dessa população. Se os valores conseguem minorar a situação dessas famílias vulneráveis, são insuficientes para garantir o fluxo econômico, um mínimo funcionamento da economia, durante a pandemia.

O governo não tomou medidas para impedir as demissões em massa. Acreditou que as empresas não demitiriam ao autorizar a redução dos salários e da jornada de trabalho. O governo também distribuiu dinheiro aos bancos privados (baixou o depósito compulsório e recomprou ativos financeiros) com o fim de garantir crédito às empresas e empresários de pequenos negócios para evitar quebras durante a pandemia. Ainda não é possível saber o impacto, mas o desemprego cresceu. Os bancos privados e as grandes empresas estavam bastante líquidos antes da pandemia e não apresentam riscos.

A crise econômica que atinge o país desde 2015 fez com que adotassem medidas de cautela e, por isso, acumularam caixa. De qualquer forma, o impacto sobre esse grupo dependerá da duração da pandemia. E, a duração depende da eficiência no isolamento, única arma que o Brasil dispõe para evitar crescimento no contágio. Como o isolamento tem sido desrespeitado, a duração da crise sanitária pode se estender por mais tempo com reflexos mais profundos sobre a economia. Outra medida em discussão é a necessária transferência de recursos do governo central (único capaz de emitir moeda ou dívida) para os Estados e Municípios que, por conta da crise dos últimos 5 anos se encontravam em situação fiscal extremamente complicada dada a queda na arrecadação. Incapazes de elevar os gastos e mesmo de cobrir os gastos com a saúde, os Estados solicitam também que seja postergado o pagamento de dívidas passadas junto à União e que sejam liberados recursos no montante das perdas de arrecadação que resultam da paralização das atividades econômicas durante o isolamento social. Por esses motivos, pelo caos da saúde, econômico e político, a atividade econômica deve ser mais duramente afetada e sua recuperação mais lenta.

Conclusões

Parece que está instalada uma tempestade perfeita no Brasil. Crise política, de saúde e econômica se conjugam. Não é por menos que a pandemia se alastra de forma acelerada pelo país. O presidente, ao querer demonstrar poder, incentiva as pessoas a saírem do isolamento com consequências graves para um país que não tem como testar a população. O isolamento falho, abarrota o sistema de saúde e eleva o número de mortos. Por conta exatamente disso, retardará a reabertura da economia e, portanto, uma possível retomada na atividade econômica. Atrapalham ainda a retomada o estrago que a pandemia está fazendo sobre a atividade econômica ao o governo não adotar medidas mais contundentes para manter o nível de atividade. As medidas de compensação de renda são pequenas e não atingem as pequenas e médias empresas; a tentativa de irrigar o sistema pelo crédito privado não tem sido eficiente, dado o risco de crédito que orienta a ação dos bancos privados – por isso se retraem e retém a liquidez. O nível de desemprego tem crescido e muitas empresas pequenas e médias podem quebrar. As grandes empresas e os bancos estão bastante líquidos para aguentar a pandemia.

Como se já não bastasse a crise da pandemia e seus reflexos negativos sobre a atividade – em se mantendo a equipe econômica – Guedes e sua equipe prometem, após a crise, voltar às políticas restritivas para novamente tentar trazer a relação da dívida pública com o PIB para baixo. Se isso prevalecer, o desastre será maior ainda, repetindo os 5 últimos anos, quando a dívida/PIB se elevou para 80% com forte retração na atividade econômica e desindustrialização, só que agora com uma relação dívida/PIB talvez em 100% após a pandemia. Não se sabe o que sobrará no final. Alguns economistas que defendem as políticas de austeridade já estão repensando sua posição aliando-se aos que avisavam que só o crescimento econômico pode diminuir a relação dívida/PIB. Para tanto, seria necessário inverter a política com uma ação forte do Estado em investimentos públicos para tirar a economia do buraco em que se encontra há 5 anos. De qualquer forma, tudo depende de como se desenrolará a crise política.

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