Projeções populacionais de um Malthus às avessas

novembro 05, 2020.

Vitor Pinto.

Escritor. Analista internacional.

Thomas R. Malthus

Salto entre extremos

Números apocalípticos e previsões bombásticas exercem uma atração irresistível sobre a demografia. Verdade se diga, contudo, que os dois expoentes aqui referidos não são demógrafos. O primeiro é Thomas Malthus, clérigo anglicano que em 1798 publicou “Um ensaio sobre o princípio da população”, no qual afirmava que a população crescia em forma geométrica enquanto a produção de alimentos o fazia de forma aritmética, prevendo que peste, fome e guerras se encarregariam de controlar a explosão demográfica. Demorou, mas a realidade histórica se encarregou de desmenti-lo. Agora entra em cena um professor de saúde pública originário da Universidade norueguesa de Bergen e hoje na Escola de Medicina da Universidade de Washington em Seattle, Stein Vollset, que em 14 de julho último publicou com centenas de autores secundários na revista britânica The Lancet, o texto “Fertilidade, mortalidade, migração e cenários populacionais para 195 países e territórios de 2017 a 2100” (Volume 396, Issue 10258, p. 1285-1306). Ao seu lado está Christopher Murray, diretor do IHME (sigla em inglês do Instituto de Medições e Avaliações em Saúde).

De imediato o trabalho, contestando projeções da Divisão de População da ONU e de instituições renomadas como o Wittgenstein Centre para Demografia e Capital Humano de Viena, ganhou grande destaque na mídia leiga internacional ao prever uma radical modificação no mapa demográfico global com sérias implicações em áreas como fertilidade, mudanças climáticas, produção de alimentos, crescimento econômico, força de trabalho, estrutura etária e, no limite, poder geopolítico.

O “furo” da The Lancet, consequência das relações de amizade entre seu diretor e Vollset, insere-se na verdadeira guerra entre as grandes empresas de publicação mundiais que as fazem disputar duramente as novidades científicas para publicá-las antes dos concorrentes. A própria “Lancet” já precisou desculpar-se por ter apressadamente dado espaço a estudos em seguida desmentidos sobre a pandemia da Covid-19.

Menos 2 bilhões de habitantes no mundo

O mundo, de uma população de 7,6 bilhões de pessoas em 2017 saltaria para um pico de 9,7 bilhões em 2064 e a partir daí decresceria até 8,8 bilhões ao final do século, ou seja, 2 bilhões menos que o estimado pela Divisão de População da ONU. O Brasil, no mesmo intervalo, cairia de 210 milhões para 165 milhões de pessoas. Na tabela a seguir estão os dez países mais populosos (em milhões de habitantes) segundo esse estudo.

Population estimation in 2100

Os autores do estudo dizem que as razões principais residem no ritmo de diminuição da fertilidade e da mortalidade, fatores que gradativa, mas rapidamente saem de um padrão elevado para taxas cada vez mais baixas. O fracasso quase absoluto das previsões precedentes não comove muito os adivinhos contemporâneos, mas desta feita acertarão sugerindo mudanças tão violentas quanto as sugeridas na tabela acima? Pelos cálculos do grupo comandado por Vollset e Murray, países como Japão, Itália, Tailândia e Espanha perderão metade de suas populações, ao passo que a África Sub-Saariana triplicará seu contingente humano. As pessoas idosas, com 65 anos e mais serão 2,4 bilhões em 2100, frente a 1,7 bilhão no grupo com menos de 20 anos de idade. O acesso a métodos contraceptivos e a melhora nos padrões educacionais entre mulheres e meninas apressarão as mudanças.

As ameaças não são poucas caso esses dados se confirmem. Para Vollset “embora o declínio populacional seja potencialmente bom para reduzir as emissões de carbono e aliviar a pressão sobre a produção de alimentos, com mais pessoas idosas e menos jovens teremos menos trabalhadores e pagadores de impostos e os países terão reduzida capacidade de construir sistemas de suporte social e de saúde para os mais velhos.

Críticas ao modelo do IHME

Números tão impactantes e ameaçadores por um lado se espalharam feito rastilho de pólvora na imprensa leiga e foram aceitos sem qualquer análise maior por muitos profissionais, mas por outro lado geraram uma torrente de críticas nos meios científicos. As mais bem embasadas vieram da principal organização de estudos demográficos, a austríaca Wittgenstein. Em detalhado texto assinado por um de seus pesquisadores, Tomás Sobotka junto com Glettel-Basten da Universidade de Hong Kong (Futuros populacionais incertos: reflexões críticas sobre o texto do IHME” – em: https://osf.io/preprints/socarxiv/5syef/) e ainda não publicado, o estudo editado pelo The Lancet é demolido de cima a baixo, pois ele tenta apagar a memória até dos dados do World Population Project da ONU, bem como de dezenas de outras projeções produzidas por demógrafos. Os autores escreveram carta ao The Lancet subscrita por 170 pesquisadores de vários países. O documento adota uma visão simplista frente e complexos fenômenos sociais como a teoria migratória, acesso a planejamento familiar, padrões de fertilidade e o relacionamento entre as dinâmicas populacionais e mudanças climáticas, sistemas de saúde e economia, p. ex.

A média de anos de escolarização das mães tem sido um dos fatores relevantes nos países desenvolvidos, mas até onde isso se repete ou é plausível nos países africanos? O Níger tem 7,08 filhos por mulher (era 9,2 em 2012) e esse é um padrão desejável para sua sociedade. Prever, como faz o estudo, rápido declínio em países sem tradição de uso de métodos anticoncepcionais está correto? Os cenários de fertilidade apresentados carecem de coerência interna e as previsões são fortemente afetadas por decisões arbitrárias.

Outro problema diz respeito à razão de sexo ao nascer. Na Ásia Oriental sudeste e sul e no sudeste do Cáucaso e da Europa praticam-se abortos seletivos, com discriminação por sexo (preferência por filhos homens) e isso tem serias implicações para as projeções populacionais, não consideradas no estudo que assume uma relação de sexo nos nascimentos constante até 2100, subestimando a futura reposição de crianças.

Determinantes de migrações são os mais difíceis de estimar e a situação atual, p.ex., não foi prevista pelos pesquisadores. O estudo também se baseia em dados de 1990 a 2017 para calcular causas externas de mortalidade. Sugere, ainda, que em 17 países europeus ocidentais as migrações decrescerão de um nível 100 para apenas 35,2 ao final d século. Portugal cairia para 14,5, mas a Grécia para 61,5. Adota uma visão determinística dizendo que há uma relação direta entre o tamanho da população e fatores associados às emissões de carbono, embora essa área seja sujeita a múltiplas influências de outros fatores.

Quanto ao papel do envelhecimento, visto sempre como negativo, o estudo não considera que mudanças de longo prazo afetando padrões de educação, idade de aposentadoria, tecnologia, produtividade por idade, podem tornar obsoletas tais presunções. Análises mais otimistas dizem que pessoas com 65 anos não serão iguais às de hoje; elas serão funcionalmente jovens.

Enfim, não existem soluções prontas para o que nos espera nos próximos oitenta anos, mas é inegável que a principal tarefa é a construção de um sistema de bem-estar social e de proteção à velhice que seja sustentável dando segurança para uma vida longa aos que até lá chegarem.

Pagar pela produção de crianças

Os demógrafos revezam-se nas soluções apontadas, tentando apontar caminhos minimamente razoáveis que deveriam ser seguidos por países e governos que hoje nunca se entendem.

O mais frequentemente sugerido é uma política adequada de apoio a migrações. Outro é dar apoio às mulheres para que tenham filhos e mantenham suas carreiras profissionais, ou seja, a luta hoje travada diariamente por elas pelo menos no mundo ocidental. Ainda, encontrar meios e tecnologias para a participação de idosos na força de trabalho.

Mais realistas, algumas cidades já estão investindo dinheiro para subsidiar famílias que queiram ter filhos. É o caso de Nagi-cho no Japão, onde a mãe recebe US$ 2,700 no nascimento do filho e depois subsídios para artigos e cuidados de baby-sitter com um bom reforço se o bebê mais tarde entrar na escola secundária. Em Laviano na Itália, próximo a Nápoles, o prefeito paga 10 mil euros pelo 1º filho e dobra a quantia no 2º. Esquemas similares são adotados nas pequeninas Lestijäkvi e Michikkälä na Finlândia, tentando impedir a contínua diminuição das populações locais.

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