A tragédia política peruana

novembro 18, 2020.

Vitor Pinto.

Escritor. Analista internacional.

Foto de criança em trajes típicos em Cusco, Peru

Foto de Ben Ostrower em Unsplash

O Peru acaba de empossar seu terceiro presidente em um prazo de oito dias. O engenheiro Francisco Sagasti do partido Morado, aos 76 anos de idade foi escolhido pelo Congresso unicameral para substituir Manuel Merino que durou menos de uma semana no cargo ao qual chegara a fim de ocupar o lugar de Martín Alberto Vizcarra, demitido sob acusações de suborno. Todos conservadores, assim como os que os precederam nos últimos trinta anos.

Longa história de instabilidades

Os 16 milhões de incas que viviam nos altiplanos peruanos, foram reduzidos a 2,7 milhões em 1570, trinta anos após a ocupação. Graças ao espírito dominador de Pizarro e às enfermidades contagiosas trazidas pelos espanhóis, que nunca compreenderam a riqueza humana que haviam descoberto, este foi um dos maiores genocídios já testemunhados pela humanidade

Tão logo obteve sua independência da coroa espanhola, nos primeiros 24 anos de República, entre 1821 e 1845, o Peru teve o mesmo número de presidentes, um por ano (incluindo o argentino San Martín e o venezuelano Simon Bolívar). Depois de assistir ao país submetendo-se aos caudilhos de costume, Victor Haya de la Torre fundou a Apra – Aliança Popular Revolucionária Americana, com programa anti-imperialista e até hoje presente na política nacional. Em 1968 um curioso regime militar de esquerda, nacionalista em sua essência, com o general Velasco Alvarado perdurou por doze anos no poder, chegando a transferir 50% das terras cultivadas do país para cooperativas populares que beneficiaram pelo menos 350 mil famílias.

O liberalismo começou em 1980 com Belaunde Terry, mesmo ano em que se instalou a guerrilha do Sendero Luminoso. Logo veio o ressurgimento do Apra, já distante de suas origens esquerdistas, com Alan García que presidiu o país em dois períodos (85 a 90 e 2006 a 2011), mas uma terrível hiperinflação ao final do 1º mandato criou as condições para a grande crise da qual o Peru não mais conseguiu livrar-se.

As eleições de abril e junho de 1990 marcaram de maneira indelével a moderna história peruana. Mario Vargas Llosa, mais tarde Prêmio Nobel de Literatura e ainda hoje dando palpite sobre todo e qualquer tema em discussão na sociedade peruana, montou uma campanha milionária e não havia quem duvidasse que venceria. No entanto, o povo já estava farto com as propostas neoliberais e se negou a votar nos ricos que sempre o exploraram. Com apoio da esquerda o desconhecido descendente de japoneses Alberto Fujimori partiu de 0,5% de apoio nas pesquisas e venceu com 62% dos votos no 2º turno. Llosa, que reservara o hotel Sheraton de Lima para comemorar seu triunfo entrou em parafuso; naturalizou-se espanhol e declarou que era peruano por puro acidente geográfico. Nunca se livrou, no entanto, da pecha de ter perdido uma eleição absolutamente ganha entregando o país à pior das ditaduras. Seguiu-se um período negro para o Peru. Fujimori deu um auto golpe assumindo poderes absolutos em abril de 92, entregou o comando de suas forças ao sádico Vladimiro Montesinos e exerceu o poder com crueldade até 2000 quando teve de fugir para o Japão enquanto era demitido do cargo de presidente por incapacidade moral. Atualmente, aos 81 anos, cumpre sentença de 25 anos de prisão por homicídio e corrupção.

Odebrecht, Lava Jato e Presidentes condenados

A influência do esquema de propinas em troca de vantagens em obras praticado pela Odebrecht não contaminou apenas a política brasileira à época dos governos do Partido dos Trabalhadores. Espalhou-se pela América Latina e teve efeitos particularmente profundos sobre as administrações públicas peruanas, com denúncias patrocinadas pelos processos desenvolvidos pela Lava Jato. Os cinco presidentes seguintes, na era pós-Fujimori, foram removidos do cargo. Alejandro Toledo, acusado por corrupção escapuliu para os Estados Unidos que até aqui não aceitaram os pedidos de extradição feitos por Lima. Ollanta Humala, o único que se rebelou contra o regime do “japonês”, está em liberdade condicional sob acusações de lavagem de dinheiro pela Lava Jato. Pedro Pablo Kuczynski segue em prisão domiciliar por lavagem de dinheiro. Martín Alberto Vizcarra foi destituído pelo Congresso face a acusações de aceitação de suborno.

Num caso à parte, Alan García em 17 de abril de 2019 atendeu ao sinal da campainha em sua residência no bairro de Miraflores. Eram as 6:43 da manhã de uma 4ª. feira e à porta apresentaram-se agentes da Divisão de Investigações de Deitos de Alta Complexidade e o promotor Henry Amenábar. García estava na escada do 2º andar e disse que ia telefonar ao advogado, entrou em seu quarto e fechou a porta. Em poucos minutos, ouviu-se um tiro. Os policiais forçaram a porta e encontraram o ex-presidente agonizando. Inutilmente o levaram ao hospital, não conseguindo cumprir a ordem de detenção.

Vizcarra assumiu por ser o vice de Kukzynski e tentou uma via original que acabou também não dando certo. Ele governou sozinho, sem partido político algum e entrou em choque direto com o Congresso unicameral ao qual acusou de ser corrupto e corporativista. Quando duas moções do Executivo propondo reforma do Judiciário não foram aceitas pelos deputados ele usou a Constituição e fechou o Congresso. Com isso forçou nova eleição legislativa, o que aconteceu em janeiro deste ano. Contudo, como a lei peruana impede a reeleição para qualquer cargo, o mandato dos recém eleitos e atuais componentes do Congresso terminará em abril do ano que vem, data marcada para as eleições regulares. Vários parlamentares enfrentam processos na Justiça por crimes principalmente relacionados à ordem financeira.

Na primeira chance o Parlamento deu-lhe o troco e cassou seu mandato com 105 votos (eram necessários apenas 87), embora seu nível de aceitação entre o povo variasse entre 70% e 80%. As acusações de ter recebido dinheiro em troca de projetos quando foi governador em Moquegua anos atrás, não se comprovaram até o momento. Manuel Merino de Lama (nome adequado considerando a situação), um parlamentar sem expressão que conquistara a direção do Parlamento, de olho no cargo forçou a mão e acabou assumindo a presidência com o povo nas ruas por não se conformar com a falta de decoro do Parlamento. Diante de manifestações animadas, mas pacíficas, Merino encarregou a polícia de dissolvê-las, mas algo saiu do controle e dois jovens indefesos foram mortos a tiros de pistola. Imediatamente todas as forças vivas da nação pediram sua renúncia e os próprios colegas o renegaram. De Lama permaneceu pouco mais de cinco dias no cargo e renunciou.

A hipótese de retorno de Vizcarra só foi aventada por ele mesmo. No fundo, os peruanos não se opunham à sua gestão aparentemente moralizadora, mas ninguém gostaria de tê-lo de volta. Assim, o Parlamento voltou a reunir-se. Primeiro negou apoio a uma fórmula de centro-esquerda liderada por Rocío Silva Santisteban da Frente Ampla e depois elegeu, em 16 de novembro de 2020, como novo presidente (não se sabe até quando) a Francisco Sagasti que recebeu 97 votos a favor tendo 26 contra, quase todos da Fuerza Popular, agremiação política de Keiko Fujimori, filha de Alberto.

Keiko foi presa em outubro de 2018 por ter recebido dinheiro da Odebrecht em sua campanha eleitoral de 2011 quando foi derrotada por Ollanta Humala (que faturou outro tanto). Norberto Odebrecht em pessoa confessou ter entregue US$ 500 mil à campanha. Ela chegou a ser solta por um breve período, mas logo voltou a ser detida para cumprir condenação por 36 meses. Ainda assim, acaba de anunciar que será candidata no pleito do ano que vem.

Não causa surpresa o fato de que o Peru seja o segundo país mais atingido pela pandemia da Covid-19 na América Latina, com mais de 35 mil óbitos, sendo superado apenas pelo Brasil que paga alto preço pela ausência de políticas nacionais e pelo negacionismo vazio de seu presidente J. Bolsonaro que, por sinal, simplesmente tem ignorado o que se passa num país com o qual, queira ou não, nos estados do Acre e do Amazonas mantém uma fronteira de 2.995 km que inclui a tríplice divisa com a Colômbia.

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