Argentina: albertistas x cristinistas

setembro 22, 2021.

Vitor Pinto.

Escritor. Analista internacional.

Casa Rosada, escritório do presidente da Argentino

Dois anos atrás o peronismo recuperou o comando do governo argentino, beneficiando-se com o insucesso da administração do direitista Mauricio Macri. Este vai e vem domina a política dos nossos vizinhos ao sul desde que Juan Domingo Perón assumiu em 1946 o primeiro de seus três mandatos. O último, encerrado precocemente com sua morte em 74, resultou na sucessão pela 3ª. esposa, Isabelita Perón, que logo seria destituída pelos militares. Pouco inventivos ao denominar as correntes políticas mais relevantes, os argentinos apelidaram de “kirchneristas” aos adeptos do falecido presidente Nestor Kirchner e, em seguida, de “cristinistas” aos que passaram a obedecer a Cristina Fernández Kirchner, a esposa que conseguiu manter-se no poder por dois mandatos e agora é a vice-presidente na fórmula que tem Alberto Fernández (daí surgiram os “albertistas”), um advogado de 63 anos originário do Partido Justicialista (peronista), na cadeira presidencial.

O calendário eleitoral argentino é complicado, prevendo uma renovação de 50% da Câmara de Deputados e de 1/3 do Senado justo ao final da metade do mandato, numa eleição nacional que se realizará no próximo dia 14 de novembro para escolher 127 deputados e 24 senadores. No entanto, dois meses antes acontecem as eleições primárias, denominadas de PASO (iniciais de Primaria, Aberta, Simultânea, Obrigatória), uma espécie de filtro para o pleito legislativo, uma simplificação em parte necessária devido à grande quantidade de partidos locais, em geral menores, que existem às dezenas nas províncias. Somente avançam, ou seja, habilitam-se a concorrer em 14/11 aqueles candidatos que recebem pelo menos 1,5% dos votos.

Nas 23 províncias (correspondem aos estados brasileiros) e na capital, viceja uma imensa salada de agremiações políticas. Por exemplo, em Misiones, uma das principais do país, onde predomina a “Frente Renovadora pela Concordia”, o discurso oficial é de “que ninguém de fora nos diga o que temos de fazer ou deixar de fazer. As Províncias são mais importantes que a Nação“.

Os resultados das PASO do domingo passado foram surpreendentes, indicando uma nova guinada argentina para a direita: a coligação “Juntos por el Cambio” (Juntos pela Mudança) cujo líder principal é o ex-presidente Mauricio Macri, obteve 8,8 milhões de votos - 40,0% do total, enquanto o grupo peronista de Alberto Fernández reunido em torno da “Frente de Todos” conseguiu 6,86 milhões (31,0%). Coalizões nanicas tiveram representatividade menor: Frente de Esquerda com 5,8%; 3ª. Via 4,5%; Outras 14,9%. O comparecimento de 67% dos eleitores foi considerado como um fator positivo em tempos de pandemia (pessoas com covid-19 ou consideradas como casos suspeitos não foram obrigadas a votar)

Como uma desagradável novidade, pois há tempos grupos extremistas deixaram de ter relevância no país, a agremiação de ultradireita “Avanza Libertad” do jovem Javier Milei obteve 13% dos sufrágios na capital federal, na prática assegurando sua próxima eleição como deputado. Ele conta com seguidores que admiram Donald Trump e Jair Bolsonaro (cujas críticas ao governo peronista recebem grande divulgação) e se opõem às medidas sanitárias de combate à Covid-19, tendo promovido queimas de máscaras em praça pública reivindicando o “direito individual a contaminar-se”.

Implosão no governo Fernández

O retumbante fracasso nas PASO de imediato teve efeitos devastadores sobre o já frágil governo de Alberto Fernández, na verdade uma aliança precariamente costurada entre forças de centro-esquerda e o velho sindicalismo urbano que haviam triunfado em 2019. A derrota nas PASO foi atribuída a quatro fatores: inflação de 50% ao ano, uma das mais altas do mundo; manejo deficiente pelo governo no combate à pandemia; descontrole de preços, em especial de alimentos e medicamentos; cansaço do eleitorado com a classe política tradicional. Então, os conflitos internos explodiram e cinco ministros sempre obedientes a CFK (Cristina Fernández Kirchner) pediram demissão. O porta-voz da presidência, Juan Pablo Biondi, fez questão de acrescentar que sua saída tinha o caráter de ser irrevogável por não aceitar as palavras da poderosa vice que o acusou de boicotá-la permanentemente.

Cristina escreveu uma carta muito dura como se não tivesse qualquer responsabilidade com a má administração da política e dos negócios argentinos. Com razão a oposição diz que o regime argentino não é presidencialista e sim vice presidencialista. Ela criticou os atrasos salariais, o encarecimento dos produtos da cesta básica, a falta de trabalho, a política equivocada de ajuste fiscal. Lembrou que na derrota do justicialismo de 2015, a Argentina tinha o maior salário-mínimo (em dólares) da América Latina, o dobro do atual.

Para CFK, no entanto, permanecer no governo é vital, pois, mesmo que venha a manter-se como senadora, corre o risco de ver autorizados na justiça os processos por corrupção que estão em suspenso dada a imunidade de que hoje desfruta como vice-presidente.

Alberto Fernández até que gostaria de livrar-se da perigosa e incômoda Cristina, mas não tem coragem suficiente para agir e limpar seu entorno, mesmo compreendendo (se é que chega a este nível) que se permanecer obedecendo às ordens da madame está condenado ao desastre e à derrota inevitável para a nova e radicalizada direita argentina. Agora mesmo, ao invés de aproveitar a deixa aceitando as demissões dos ministros cristinistas, não só reconduziu-os todos ao ministério como acatou a indicação de CFK para nomear o governador de Tucumán, Juan Manzur, como o novo 1º Ministro, substituindo a Santiago Cafiero (homem de sua confiança) que como prêmio de consolação foi deslocado para a chancelaria.

Num cenário de inflação crescente e desordem no comando do país, as medidas populistas que estão sendo anunciadas parecem ser meros e temporários alívios, destinadas a acalmar os setores mais revoltados: aumento de 53% no valor do salário-mínimo; instituição de uma caderneta de compras, válida em determinados comércios para alguns produtos; aprovação do IFE – Ingreso (renda) Familiar de Emergência – para alimentação e turismo a fim de apoiar setores que mais sofreram com a pandemia.

Perspectivas favorecem a direita

Após quase uma semana de guerra fratricida e aberta entre o presidente e sua vice, temporariamente ambos optaram por uma trégua. Cristina Kirchner faz questão de reafirmar que quem manda é ela, enquanto Alberto demonstra que sua paciência e espírito de conciliação podem chegar a limites extremos, o que o levou a ceder uma vez mais.

O povo já deu sua resposta e tudo indica que repetirá a dose em 14 de novembro. O peronismo, hoje dominado pelo kirchnerismo, tem pouca margem de manobra, pouco tempo e, também, pouco dinheiro se quiser aprofundar suas costumeiras políticas assistencialistas. Um mínimo de estabilidade agora se torna essencial para enfrentar a discussão com o FMI - Fundo Monetário Internacional -, em torno do pagamento da dívida de 44 bilhões de dólares que foram emprestados a Macri em 2018.

Caso se confirmem os resultados das primárias, o peronismo deverá perder o Senado e a maioria na Câmara, armando um cenário que se antecipa como infernal para a segunda metade do governo de Alberto Fernández e tornando provável a vitória da direita em 2023, nas próximas eleições presidenciais. Até lá o quadro político regional poderá estar modificado, principalmente em função do que acontecerá um ano antes no pleito brasileiro.

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