Haiti: um país desprezado

julho 15, 2021.

Vitor Pinto.

Escritor. Analista internacional.

Casas construídas nas montanhas aos arredores de Port-au-Prince, Haiti

A ilha de Hispaniola, especialmente no 1/3 de território a oeste que corresponde ao Haiti – o país mais miserável das Américas –, definitivamente até hoje não deu sorte. Com 27,7 mil km2, a mesma extensão do estado de Alagoas, tem praticamente a mesma população (12 milhões de habitantes) que a República Dominicana, ocupante da banda leste, mas sob realidades sociais e econômicas muito distintas.

Da “indenização” à França até as tropas da ONU

Até mesmo o orgulho de ser o segundo país do continente (após os Estados Unidos) a abolir a escravatura em 1804, mesmo ano de sua independência, rendeu ao Haiti mínimos resultados práticos, pois teve de submeter-se à ira do poder imperial da França que exigiu uma absurda indenização a seus colonos compensando-os por terem perdido a mão de obra escrava que os enriquecia nas plantações de açúcar e café. O pagamento aos gauleses sugou as energias dos haitianos e em grande parte determinou a intensa miséria que até hoje persiste. Recorde-se que o Brasil foi o último a aprovar a abolição, em 1888, com a Lei Áurea assinada pela princesa Isabel.

Governo após governo, golpe atrás de golpe atravessando o século XX e fazendo o país acumular problemas insolúveis, finalmente desembocaram na Minustah - Missão da ONU para a estabilização do Haiti - em 2004: uma tentativa de promover alguma paz após o golpe de estado que derrubou o presidente Jean-Bertrand Aristide que, por seu turno, sucedera a selvagem dinastia de Papa Doc Duvalier. A Missão, que nunca conseguiu nem estabilizar nem definir um caminho para o país superar seus profundos problemas, foi conduzida pelo Brasil, que até a sua desativação em 2017, forneceu os dez generais (desde Augusto Heleno, o primeiro, até Ajax Pinheiro) que comandaram a força com 30378 militares ao longo de treze anos, a mais numerosa desde a Guerra do Paraguai. Para o exército brasileiro, servir no Haiti nesse período tornou-se uma sólida referência para a progressão na carreira militar, não sendo por acaso que os líderes de então estejam hoje ocupando altos postos na administração Bolsonaro.

O povo haitiano guarda recordações pouco agradáveis das missões da ONU em seu território, tanto que logo depois da retirada dos homens da Minustah a sede da organização teria sido atacada e depredada para marcar a rejeição à presença estrangeira em solo nacional. A opinião predominante é de que foram positivas somente em relação à segurança e ainda guardam bem a lembrança da Operação Punho de Ferro realizada no mandato do general Heleno em Cité Soleil, uma favela sobre palafitas em Porto Príncipe então ocupada por 300 soldados brasileiros tendo como saldo 63 mortos. A atuação nas favelas da capital sempre serviu de treinamento e exemplo para o que se faria depois nos morros do Rio de Janeiro. O mais grave, no entanto, foi a condescendência com que foi manejada a epidemia de cólera que deixou 30 mil mortos e 700 mil doentes. A linha básica de transmissão foi comprovadamente proveniente de soldados do Nepal. A ONU só reconheceu os fatos e pediu desculpas seis anos mais tarde. Em 2010 um violentíssimo terremoto arrasou parte do país e muitos dos que sobreviveram foram abatidos pelo furacão Thomas em 2016. Por fim, as organizações nacionais e internacionais de proteção de direitos humanos continuam cobrando pelo menos indenizações dos países responsáveis e da ONU pelas milhares de crianças ditas “filhas do Minustah” pelo relacionamento sexual dos soldados com as mulheres haitianas, abandonadas tão logo os soldados eram repatriados.

Assassinato do presidente Jovenel Moise

Num quadro de permanente instabilidade, o presidente Michel Martelly designou um desconhecido e sem qualquer experiencia política, Jovenel Moïse, para concorrer à sua sucessão pelo partido de direita que ele mesmo inventara, o “Tèt Kale” (Cabeça Calva, o que deveria significar responsabilidade). A eleição foi fraudada e em seguida anulada, mas um segundo pleito confirmou o triunfo de Moïse. Como o voto não é obrigatório poucos compareceram e o vencedor obteve somente 591 mil votos num país com 12 milhões de habitantes.

Jovenel, 53 anos de idade, não chegou a exercer a profissão de professor. Investiu numa empresa de cultivo orgânico de bananas, com a qual enriqueceu. Na campanha repetia que nada entendia de política, ficando conhecido como “El hombre banana”. Eleito, logo jurou apoio irrestrito a Donald Trump, dele ficando órfão com a derrota republicana nos EUA. Rapidamente perdeu substância no país ao confrontar a tudo e a todos. Afinal, em janeiro de 2020 fechou o Congresso passando a governar por decreto. Suas propostas de mudar o regime formando um Parlamento unicameral, eliminar o posto de 1º Ministro (PM) e aprovar uma nova Constituição não encontraram ressonância em parte alguma ao ponto de que os inimigos do presidente se transformaram numa unanimidade no Haiti. Segundo ele, um grupo de famílias abastadas do país que controlam o setor elétrico queria derrubá-lo. Autoritário, dois dias antes de seu assassinato nomeou um novo PM, Ariel Henry, que não chegou a ser empossado pois nem o Congresso nem os Tribunais superiores estavam funcionando, mas marcou novas eleições (nas quais não poderia concorrer) para daqui a três meses. Pouco antes de viajar para um fim de semana em Jackmel a fim de divertir-se no mais famoso carnaval do Caribe, Moïse ordenou a prisão de 23 adversários políticos (entre eles o Juiz da Suprema Corte Yvickel Dabrézil, que a oposição já indicara para substituí-lo até a nova eleição).

As gangues tornaram-se cada vez mais afoitas. O gangster mais conhecido, Jimmy Barbecue Cherizier, formou o “Grupo dos 9”, uma união entre os principais bandos de malfeitores, e num pronunciamento nas redes sociais clamou pela tomada do poder por meio da derrubada de Moïse, no que chamou de “insurreição dos pobres”.

Protegido por mercenários, desde fevereiro Moïse trancou-se em sua casa no bairro de Pelerin, comunidade de Pétion-Ville, o mais rico de Porto Príncipe, uma cidade que se comprime entre dezesseis morros e o mar do Caribe. Na noite de 6 para 7 de junho último por volta de 1 hora da manhã, cinco camionetes estacionaram em frente à casa e 28 homens entraram sem que ninguém os bloqueasse, subiram as escadas internas e foram direto ao quarto do casal. Moïse foi morto com dezesseis tiros e sua esposa Marine escapou, embora gravemente ferida.

Tratam-se, quase todos, de mercenários colombianos, aposentados de suas Forças Armadas, fluentes em espanhol e inglês, que vendem serviços pelas Américas a quem melhor lhes pagar. 17 foram detidos, 3 mortos e 8 escaparam. Dois têm dupla nacionalidade, haitiana e norte-americana e também foram presos em suas casas em Porto Príncipe. Logo, a polícia deteve o médico Christian Emmanuel Sanon, 67 anos, que recém retornara em vôo proveniente de Miami onde há anos toca vários negócios de prestação de serviços de saúde e de comércio, considerando-o a eminência parda do atentado fatal a Moïse e esposa.

Na verdade, por essa linha de raciocínio, todo o atentado teria sido tramado em Doral, localidade vizinha a Miami, sendo levado à prática pela empresa CTU Security (Counter Terrorist Unit Federal Academy – Unidade Contraterrorista), contratada por Sanon e que para executar o serviço contratou os colombianos.

Três outras hipóteses em relação aos mandantes são de que: a) tenha sido efetivado por venezuelanos. Moïse, para reforçar seu alinhamento a Trump denunciava a política de Maduro embora beneficiando-se de preços privilegiados do petróleo vendido pela Petrocaribe, em relação à qual pesam diversas denúncias de corrupção e de desvio de fundos; b) a iniciativa coube ao grupo de empresários haitianos, talvez em conluio com ao senadores que não desejariam um parlamento único conforme proposto pelo presidente; c) a alternativa mais provável é de que o crime tenha sido cometido pelos seguranças de Moïse, que também eram colombianos.

Iván Duque, presidente da Colômbia de imediato enviou assessores ao Haiti, fornecendo a ficha completa dos “retirados” (aposentados) presos ou fugitivos devido ao atentado. Os Estados Unidos também despacharam seus especialistas, mas não atenderam ao pedido do governo de plantão para enviar tropas, a exemplo da atitude tomada pela OEA e pela ONU.

Próximos capítulos

Está exercendo o governo como interino Claude Joseph, que estava como 1º Ministro e já decretou Estado de Sítio por 15 dias. Desafiam-no, pois também querem o posto, dois outros velhos políticos: Ariel Henry por ter sido indicado pelo presidente falecido, mesmo que não empossado no cargo; e Joseph Lambert, o presidente do inoperante Senado. A ONU, preliminarmente, considera que o exercício da presidência deveria caber a Lambert.

A realização de eleições em tal clima, apesar de contar com a concordância da administração Biden, é vista como uma clara impossibilidade.

Em meio ao caos, a pandemia de Covid-19 avança. Até pelo não funcionamento de qualquer instância legal no país, os registros de casos e de óbitos são baixos. Até hoje o Haiti não recebeu uma dose sequer de qualquer vacina.

Caso o Parlamento possa voltar a funcionar e um novo presidente do Tribunal de Justiça assuma (o anterior faleceu de covid), haveria uma pequena possibilidade de um governo interino de coalisão, mas este caminho teria de ser construído de imediato pelos próprios haitianos. Soluções impostas de fora, sejam elas quais forem, não serão aceitas pelo povo. Enquanto isso, é urgente fazer frente à crise alimentaria. Realmente, é uma lástima que anos de presença das missões da Organização das Nações Unidas não tenham sido capazes de contribuir, por pouco que fosse, para que o Haiti enfim conseguisse modificar o destino que lhe foi imposto por todos aqueles que tentaram “ajudá-lo”.

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