Sobre o Sahel africano

fevereiro 21, 2022.

Vitor Pinto.

Escritor. Analista internacional.

Árvores acácia em planície perto de Wadi Archei nas montanhas Ennedi, Chad, África Central

Imagem sob licença Attribution-Share Alike 2.0 Generic, da Creative Commons, sem modificações.

Este é um resumo em português sobre a situação no Sahel – África Ocidental – elaborado a partir do livro: The Oxford Handbook of the African Sahel – Edited by Leonardo A. Villalón. Oxford Books. Published 15 January 2022. 832 pages.

É uma publicação extraordinária, com a melhor marca da Oxford e o objetivo aqui perseguido é de proporcionar, em tradução livre, uma visão de aspectos relevantes para um leitor brasileiro, em língua portuguesa, sobre uma das regiões mais conflitivas e desafiadoras de todo o mundo. Trata-se não de uma tradução integral e sim de um enfoque prático baseado numa coletânea de capítulos mais significativos. Sempre que indicado, acrescentam-se informações, descrições e comentários atualizados provenientes de fontes internacionais e nacionais referentes à região e aos seis países descritos: Senegal, Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Niger e Chade.

O livro foi uma cortesia do Prof. Stéphane Cabaret em Brasília

Sumário

  1. Introdução
  2. O Sahel
  3. Os seis países

    3.1. Senegal

    3.2. Mauritânia

    3.3. Mali

    3.4. Burkina Faso

    3.5. Níger

    3.6. Chade

  4. Construção dos estados e sociedades
  5. Militares nas políticas sahelianas
  6. Religiões e guerra santa
  7. Intervenções francesas no Sahel

1. Introdução

Sahel é um termo árabe para litoral ou costa onde as areias do Saara se estendem até as acácias dos quatro países sem acesso ao mar (Mali, Burquina Faso, Níger e Chade, posicionados entre os de menores Índices de Desenvolvimento Humano da face da Terra) e do Senegal e da Mauritânia favorecidos pela proteína ao seu alcance no Atlântico. Largamente desenhada em função de sua localização com o Magreb ao norte, Darfur e o Sudão ao leste, Nigéria ao sul e as áreas costeiras tropicais produtoras de cacau e mandioca, com o tempo a região se tornou mais e mais ligada a uma intensa diáspora na direção da Península Arábica, cidades da Europa e da América do Norte, China e mais recentemente a novos locais como Brasil e Argentina.

Nada há de “natural” sobre a política no Sahel. A configuração dos atuais países tem muito pouco a ver com as históricas atividades de seus ancestrais; na verdade é o resultado de um processo colonial específico baseado na participação da França no processo de conquista do continente ao final do século dezenove e do acelerado final dessa ocupação em 1960. A emergência do conjunto de países que formou o Sahel foi contingencial e inesperada. Seus limites e uma discreta soberania foram produzidos dentro do jogo da competição e das forças presentes nos anos 1950 quando a França, incapaz de fazer face aos desafios, achou conveniente retirar-se.

Um legado disso pode ser visto nas instituições que, embora com alguma variação de modo especial na Mauritânia e no Chade, as seis nações continuam a adotar: sistemas legais, políticos e educacionais similares, o que inclui leis de comercialização e sistemas eleitorais. Menos visível, mas centralmente importante, um segundo legado se encontra na persistência de redes transnacionais de fortes ligações entre as elites francófonas.

Em qualquer campo profissional – incluindo acadêmicos, juristas, especialistas em saúde pública, assim como entre ativistas em entidades feministas, de direitos humanos ou instituições religiosas – existem bem estabelecidas conexões transregionais em comunidades onde atuam pessoas que se conhecem muito bem e interagem regularmente em seminários internacionais ou workshops realizados nos hotéis de Bamako, Dakar, Niamey, Ouagadougou ou em Paris, Bordeaux, Marseille.

Por um lado, este livro está focado no espaço geográfico – vasto, pobre em recursos e distante dos lugares densamente habitados ou de grande consumo – que é habitualmente caracterizado como sendo o mundo “desenvolvido”. Seus limites são em geral medidos pelas precipitações: de 100 a 200 mm como média anual de chuvas no eixo norte onde a região encontra-se com o deserto. De 500 a 600 mm junto ao cinturão sudanês no sul, muito embora estas médias possam apresentar consideráveis variações. Dentro desse espaço há um Sahel humano com as diversas populações que há muito o habitam. Séculos de encontros e trocas já descritas como uma “profunda cultura saheliana” na qual povos árabo-berberes desde sempre comerciaram com os povos africanos negros do sul. É o terreno onde o mundo muçulmano encontrou o cristianismo e as religiões tradicionais africanas. É, ainda, uma área de histórica simbiose onde povos pastores se mesclam com os solos onde agricultores colocam seus grãos de rápida maturação durante a curta e intensa estação das chuvas.

Ademais de ser caracterizado como intermediária entre a savana e o deserto, o Sahel foi definido como um front entre populações sedentárias e nômades, conceitos nunca de fato contestados. As secas catastróficas da segunda metade do século XX gradualmente chamaram as atenções para o fato de que o Sahel poderia ser dividido, apropriado e desenvolvido. Estudos realizados sobre características pastorais, agrícolas e relações comerciais das populações do Sahel e do Saara a partir da década dos anos 1980 mostram que a urgência das questões humanitárias mascara o fato de que esses povos não necessariamente dividem de maneira sedentária o espaço disponível e em geral privilegiam o movimento ao invés da fixação territorial. O que de fato importa para eles é a habilidade de circular pela região, adaptando-se às variações climáticas e às crises políticas.

O desenvolvimento do terrorismo e do tráfico fizeram com que os violentos grupos extremistas se fixassem em certas noções panislâmicas como a jihad e em sua filiação à Al-Qaeda e ao Estado Islâmico. Seus ataques são imprevisíveis porque eles se baseiam em um alto grau de mobilidade e oportunisticamente tiram vantagem das (pouco precisas) áreas de fronteiras. Já as estratégias militares implementadas por Estados Unidos e França desde os anos 2000 parecem sugerir que o Sahel é o epicentro de um amplo teatro de operações que desconhece limites. Uma vez que as organizações terroristas podem expandir-se ou realocar-se a um país vizinho no qual as estruturas militares ou políticas estejam enfraquecidas, as zonas bioclimáticas em relação às quais o Sahel costumeiramente tem sido definido ao longo do século XX, de fato perderam sua importância.

Os países do Sahel foram igualmente marcados por distintas trajetórias políticas e por suas respostas a momentos históricos críticos como a onda de liberalização política em nome da democracia que varreu o mundo no começo dos anos 1990, com enormes consequências atuais que determinam as existências de quem aí nasceu, vive e morre.

2. O Sahel

Afora exóticas imagens de homens de turbante ou de vagas fabulações sobre lugares como Timbuctu, o Sahel é um remoto local do império francês na África. Desde as independências, chamou a atenção por recorrentes crises (humanitárias ou secas como as dos anos 1980 documentadas pelo fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado). São países que detém os mais altos índices de crescimento populacional o que os coloca entre as mais jovens sociedades do planeta.

Desde eventos não naturais como a fome de 2005 no Niger, o foco passou ao terreno da segurança. Com o colapso da experiência democrática em 2012, foi semeado o terreno para o extremismo violento proliferando o radicalismo religioso, alimentados pela escassez de recursos e pelos desafios do tráfico e contrabando de armas, drogas e artigos de consumo no Saara. O Sahel, minado por organizações extremistas, tornou-se uma área de interesse estratégico para os Estados Unidos da América.

Uma crônica insegurança alimentar combinada com o crescente avanço da violência leva ao entendimento geral de que o Sahel hoje é uma região de extrema vulnerabilidade e fragilidade sob risco de ainda maior sofrimento. Em tal cenário, a emergência da pandemia da Covid-19 complica uma já complexa situação.

Daí se originou a gradativa intervenção externa, transformando o Sahel num laboratório para teorias de desenvolvimento e mudança social. Um caldo de agências, projetos, ONGs e organizações de caridade alimentam a indústria da ajuda, num contexto em que organizações baseadas na fé – cristãs e muçulmanas – jogam um papel proeminente na promoção de projetos em domínios seletivos refletindo suas próprias prioridades.

Os governos dos países, agora independentes, tiveram pela frente vastos territórios e escassez financeira, concentrando seus esforços na tarefa de garantir a autoridade central e assegurar a ordem. Isso logo se mostrou insustentável, seja para o semidemocrático Senegal seja para os autoritários Níger e Mali ou para o indefinido Chade.

Nos anos 1990 instala-se pouco a pouco uma indústria de promoção da democracia, com resultados variáveis confrontando a sua dialética com a da estabilidade. Mas, na medida em que as atenções mundiais se concentraram nas crises de segurança em seus mais recentes estágios, as prioridades dos atores externos mudaram e com elas a intensidade, formas e objetivos da intervenção externa. De forma mais significativa a França – a de facto garantidora da segurança dos regimes sahelianos – foi afetada. Das intervenções militares (costumeiras) nas colônias africanas durante décadas, sua presença por lá se acelerou em 2013 com o lançamento da Operação Serval, designada para combater a ocupação jihadista no norte do Mali, continuada pela Operação Barkhane. Ao mesmo tempo, organizações internacionais como principalmente as Nações Unidas com o MINUSMA (Missão Multidimensional de Estabilização no Mali), mas também pela Comunidade Econômica dos Estados Africanos (ECOWAS) e a União Africana, tornaram-se parte do espectro de governança em áreas chave. E cada vez mais China, Rússia, Turquia e outros poderes ascendentes em busca de influência têm observado o Sahel como uma oportunidade. Vistos no contexto global, os extraordinários desafios que os seis países do Sahel têm pela frente, coletiva e individualmente, afiguram-se incontestáveis e as crises sequenciais na região são reais.

Informações nacionais (em 2021)

Países População (em mil hab.) Área (em mil km2) PIB per capita (em US$ int.) IDH Pessoal das Forças Armadas (em mil) Capital
B. Faso 21.839 274 2.207 0,452 11 Uagadugu
Chade 16.244 1.284 2.428 0,396 35 N’Djamena
Mali 20.250 1.241 2.271 0,434 18 Bamako
Mauritânia 4.859 1.030 4.563 0,546 21 Nouakchott
Níger 25.785 1.268 1.213 0,394 10 Niamey
Senegal 17.490 197 3.675 0,512 19 Dakar
SAHEL 106.467 5.294 2.440 0,456 114

Mapa do Sahel

Derivado de dados de Natural Earth. Projeção: Lambert Conforme Cônica, CM: 14E, SP: 10N, 25N

Imagem sob licença Attribution-Share Alike 3.0 Unported, da Creative Commons, sem modificações.

3. Os seis países

I – SENEGAL

A independência em 1960 trouxe, com o primeiro presidente Léopold Sédar Senghor que governou até 1974, um período de estabilidade política, competitividade, ausência de golpes sob forças armadas neutras, embora sem fugir dos problemas: desemprego, disparidades regionais e migração entre outros.

Uma nova elite que adota o árabe como idioma é um desafio para elites tradicionalmente falantes de francês, mas aí pode residir um autêntico potencial de mudança, pois ambos não necessariamente são incompatíveis.

O Senegal, considerado como exemplo de estabilidade é uma ponte entre o Sahel e o mundo via oceano Atlântico, inclusive pelo espírito de colaboração dos sufis (o país adota o islamismo sufista), cujos líderes – os Marabouts – mantiveram sua aliança com os europeus. Ao regime de Senghor seguiram-se transições pacíficas de poder em 2000 e 2014. O atual presidente Macky Sall foi reeleito em 2019 para um novo mandato de cinco anos.

O alto crescimento populacional e a urbanização exponencial (23% da população está em Dakar, a capital) colaboram para que o Senegal permaneça como o 168º dentre 186 países pelo IDH, o Índice de Desenvolvimento Humano. A influência francesa já estava presente no século XIX com base no comércio de goma arábica e no cultivo do amendoim. A islamização intensa data dos anos 1850 em diante.

Esse é um país fortemente marcado pelo tráfico de escravos que de 1501 a 1866 levou 4,9 milhões de negros africanos para o Brasil. Hoje seu símbolo maior é a pequena ilha de Gorée situada a apenas 3 km da costa junto a Dakar, de onde escravos vindos dos países vizinhos embarcavam nos navios que conduziam os que conseguiam sobreviver à viagem de mais de 5.200 km até o Cais do Valongo no Rio de Janeiro onde eram comercializados como carne negra barata para trabalharem nas plantações de açúcar ou onde necessário fosse. A ilha permanece sendo um ponto de visitação turística que entre outros já recebeu Mandela, o papa João Paulo II e Barack Obama, pelas impactantes imagens da Casa dos Escravos e da Porta do Não Retorno.

É curioso que este se tenha transformado num assunto tabu nas escolas e na sociedade senegalesa, envergonhadas com o massacre de seus antepassados e não para os brasileiros onde viveram os escravocratas e onde estão milhões de descendentes do povo escravizado. “Não podemos simplesmente apagar meio século de colonização africana”, diz um historiador africano atual, lembrando um provérbio da etnia wolof ainda dominante no Senegal de agora: “Ku kamúl fanga jêm dellu fanga jugé” (Aquele que não sabe para onde vai deveria voltar para o lugar de onde veio).

II – MAURITÂNIA

Esta é a única república islâmica dentre os seis países. Independente em 18/11/1960, nenhuma outra nação estava tão pouco preparada para gerir um vasto território desértico então com menos de 1 milhão de habitantes e mesmo após 60 anos, quando permanece sendo o menos populoso do Sahel. Também não herdou qualquer infraestrutura da era colonial e logo virou área de disputa para Marrocos e Mali, precisando ser defendida por tropas francesas e regionais.

Três etnoculturas são dominantes: grupos de mauritanos negros (Haalpulaar, Soninke, Wolof, Bambara) com 30% da população; “brancos” ou Beydanes – berberes árabes Moors com 30% e os Haratines, descendentes de escravos africanos (em parte ainda servis). Os moors dominaram, impuseram o islamismo e ignoraram as demais crenças ou grupos não árabes que têm crescido politicamente, as vezes se aliando entre si para desafiar os moors.

País rico em minérios de ferro, ouro, pescado, prata e significativo potencial agrícola, tem se constituído em uma ponte entre o sub Sahara e o norte da África. De 1975 em diante uma série de golpes e contragolpes militares assolou o país, ao ponto de que em agosto de 2009 um jovem haratine imolou-se em frente à embaixada francesa, mostrando a face da radicalização religiosa ligada ao Estado Islâmico.

O islamismo como governo tem sido contestado, levando a crescente radicalização e a fortes debilidades institucionais que fazem da Mauritânia o elo mais fraco do Sahel. A ação regular da AQIM (A-Qaeda in the Islamic Magreb) que entre 2005 e 2010 teve um augo de ações, em outubro de 2007 descambou para o assassinato de quatro turistas franceses. É um islã politizado por meio de seu lado mais agressivo que se beneficia de um setor de segurança no qual os beydanes ocupam todos os postos de comando deixando os níveis mais baixos aos haratines e aos não-árabes mauritanos, o que gera constantes tensões, pois a marginalização dos pretos origina riscos importantes de futuros conflitos.

O golpe de 2008 reconduziu os militares formalmente ao poder com Ould Abdel Aziz. De fato, o país desde 1960 vem sendo governado exclusivamente por militares, embora os dois últimos presidentes, estando na reserva, tenham sido eleitos por partidos políticos como se civis fossem.

Três desafios

Que, na verdade, são quatro. O primeiro diz respeito ao domínio exercido pelos Beydanes (os “brancos” moors) que consideram qualquer concessão à diversidade cultural mauritana como uma ameaça à sua concepção da Mauritânia como um país árabe. Em 2016 um partido explicitamente dedicado a promover uma “identidade árabo-moorish” foi criado. A crise racial pareceu diminuir no único interlúdio democrático entre 2007 e 2008, durante 15 meses sob o eleito Sidi Ould Cheikh Abdullah, deposto por Abdel Aziz que, empenhado em retirar direitos dos negros e apresentar-se ao mundo como um país árabe, substituiu o francês pelo idioma árabe nas escolas ademais de retirar-se da organização dos Estados Africanos (ECOWAS) e insistir para que a Mauritânia fosse geograficamente associada à África do Norte e ao mundo árabe e não ao Subsaara. No período de Ould Abdel Aziz (2008 a 2019) as tensões a respeito do lugar a ser ocupado na sociedade por cidadãos de outras etnias mantiveram-se vivas e, ao não serem resolvidas, acabaram por exacerbar-se. Como uma chaga, a escravidão persiste na Mauritânia. Numa tentativa de esquivar-se das críticas globais, particularmente quanto à religião por permiti-la, o governo tem editado leis possibilitando a que donos de escravos sejam processados, mas, no dia a dia, no trabalho doméstico em Nouachott ou nas lides do campo persiste amplamente presente, aceito pelos e pelas beydanes (o nome “Ould”, incluído em todos os patronímicos de presidentes, significa “Filho de” no idioma árabe adotado pela elite da Mauritânia).

O segundo, ligado ao próprio futuro do país, diz respeito à eternamente prometida extirpação dos militares da política nacional. O acesso ao poder por um governo civil democraticamente eleito em 2007, seguindo-se a uma transição a partir do regime militar, deu esperanças a muitos, mas o golpe de 2008 claramente jogou por terra esta hipótese. Os militares retornaram e a sucessão do general Abdel Aziz privilegiou seu ministro da Defesa, o também general reformado Mohamed Ould Guazouani, eleito em 2019 para um mandato de cinco anos. Na prática o Exército comanda o país há quarenta anos sem contestação e a cultura dominante é de que ele tem “legitimidade nacional”. O resultado é o domínio Beydane das posições de mando, não havendo qualquer sinal de que pretendem desistir de seus privilégios, os quais incluem procedimentos excludentes de base étnica, tribal, regional e ideológicos. A natureza pretoriana do regime de mando mauritano é hoje mais real do que nunca.

O terceiro se refere ao terrorismo relacionado à manipulação do Islã, a religião estatal desta República Islâmica. Em seguida ao golpe de 2008, Ould Abdel Aziz teve sucesso em convencer parceiros nos Estados Unidos, França e União Europeia de que ele pessoalmente e a Mauritânia eram aliados chave na luta contra o terrorismo no Sahel, assim como no esforço de lidar com a imigração irregular de africanos do Sub Sahara para a Europa. Contudo, para isso Abdel Aziz frequentemente teve de lidar com o crescimento da Al-Qaeda e do Estado Islâmico, provocando vários incidentes que dominaram debates cada vez mais intensos (por vezes levados ao limite da histeria) sobre a religião estatal, seu papel na política e as consequências para a sociedade.

Em conjunto esta análise conduz a um quarto desafio: o fato de que a Mauritânia de certa forma se converteu em um paraíso do terrorismo, uma espécie de hub ou de off shore onde se consolidou a formação de ativistas na vida prática e em escolas religiosas, verdadeiras madrassas – não tão rígidas como as paquistanesas, mas satisfatórias para as condições do ambiente africano. Curiosamente, nenhum novo ataque terrorista ocorreu depois de 2011, o que teria sucedido em função de dois fatores: um, por um possível acordo entre líderes das células locais da Al-Qaeda e do Estado Islâmico com o governo de plantão; outro porque, com a situação razoavelmente pacificada internamente, os grupos ganhavam liberdade para infernizar a vida nos países vizinhos. Isso, sem dúvida, passou-se no Mali, para onde o governo teria “exportado” muitas de suas vítimas para campos de refugiados. De todas as maneiras, a Mauritânia podia negociar com França e Estados Unidos o apoio financeiro de que se julgava merecedor por participar da guerra antiterror no Sahel na situação de um país que soubera controlar o inimigo dentro de seu território. Situação tão complexa exigiu da administração islâmica de Abdel Aziz um caminhar sobre ovos numa situação de permanente instabilidade.

III – MALI

Sem acesso ao mar, empobrecido e atormentado por ciclos de seca e rebeliões armadas, a República do Mali chegou aos anos 1990 como um modelo de transição de sucesso após anos de governos autoritários. Esta imagem sobreviveu duas décadas de pobre governança, até que uma crise de múltiplos formatos demoliu a boa reputação.

Uma rebelião liderada pelos tuaregues ganhou o Norte e soldados em Bamako prepararam um golpe que jogou o país no caos. Separatistas tuaregues juntaram-se a militantes jihadistas e chegaram a ocupar metade da nação, declarando a independência de Azawad (termo tradicional que designa a sua “pátria”). A Intervenção internacional conseguiu expelir os terroristas das cidades ocupadas, resgatando o poder governamental sobre o território, com exceção do norte.

Ecos da colonização

Do Sudão francês (anos 1880 até final dos 1950), sete décadas de mando colonial moldaram o futuro. Depois das derrotas francesas na Indochina e China (1954), a queda na Argélia, a maior colônia com sua sangrenta guerra pela independência e vizinha do Mali ao norte, ajudou a derrubar a 4ª. República e a devolver De Gaulle ao poder. Em 1958 ele criou a Comunidade Francesa (OCRS) assegurando autogoverno às colônias, mas mantendo o controle sobre a defesa, diplomacia e moeda, o que dava à França a soberania desde a expansão do deserto do Saara e da borda oriental do Marrocos e da Mauritânia até o Chade e seus limites com a Líbia e Sudão. Isso garantia o acesso aos recém-descobertos recursos minerais, incluindo petróleo e gás, bem como à área de testes nucleares ao sul da Argélia.

A Comunidade morreu e a OCRS foi dissolvida com a proclamação das independências. Em 1959 Sudão francês e Senegal se uniram na chamada Federação do Mali, sucessora do Império do Mali que regeu o Sahel ocidental do século XIII ao XVII. A Federação foi logo dissolvida após a independência e assim nasceu a República do Mali.

Modibo Keita, um professor educado em escolas coloniais francesas tornou-se o primeiro presidente do Mali em setembro de 1960. Em seguida evacuou os militares franceses do solo malinês, até de Tessalit que fora fundamental no esforço de guerra contra a Argélia, estabeleceu links com Rússia e China, instituindo o Franco Malinês como nova moeda.

A Constituição do Mali, baseada na sua similar francesa era marcada por uma presidência forte e autoridade estatal centralizada. Permaneceu o mesmo estilo de governo: secular, autocrático e, por vezes, brutal.

Um golpe derrubou Keita (morreu na prisão nove anos mais tarde) em novembro de 1968 e colocou um fim nos tempos de revolução socialista. No entanto, intensas secas em 72-73 e 83-84 tornou o Mali dependente de ajuda externa, intensificando o fluxo emigratório ao qual se juntaram os tuaregues no rumo da Libia onde muitos foram absorvidos pelas Forças armadas de Khadaffi.

Sobre esse “caldo” chega o FMI com suas políticas fiscais austeras, afundando de vez a economia aproveitando para enterrar o franco malinês. Em 1990 aconteceu a 2ª. rebelião tuaregue e 100 mil pessoas saíram do país pedindo por uma nova pátria independente. Dois anos depois (após três décadas sob um só partido) o presidente eleito Alpha Oumar Konaré, além de implantar o multipartidarismo com eleições competitivas, imprensa livre, liberdades civis, direitos políticos, menos corrupção e forte governança, conseguiu fazer a paz no norte. O Movimento Azawad foi acolhido e se reintegrou ao exército nacional.

Os bons tempos no Mali, porém, não resistiram ao século XXI e ao retorno de ATT – Amadou Toumani Touré – (governou o país em 91 e 92) que ganhou as eleições de 2002. Os ganhos pouco a pouco foram perdidos; surgiu o tráfico de drogas latino-americanas a tudo corrompendo. Então, em 2011, com a morte de Khadaffi os tuaregues retornaram ao país impulsionando o Movimento Nacional para a Libertação do Mali (MNLA). Ao mesmo tempo, o grupo Ansardine, aliado à Al Qaeda do Magreb Islâmico (AQIM) que estava há tempos no norte do Mali, expulsou as Forças Armadas de três províncias e de imediato se impôs aos tuaregues, implantando uma dura e radical interpretação das leis islâmicas.

Diante desse quadro já por si só anárquico, demonstrando a debilidade da democracia malinesa, um novo grupo fardado decidiu aplicar outro golpe de Estado, forçando o presidente Touré a se esconder.

O povo, seguidor das mais variadas religiões, via tudo isso como uma punição divina a castigar sua corrupta elite dirigente. Em janeiro de 2013 o presidente francês François Hollande decidiu enviar suas tropas numa rápida ofensiva contra as forças da Ansar Dine a da AQIM junto aos exércitos do Mali, Niger e Chade na “Operação Serval” visando acabar com a ocupação jihadista e possibilitar uma transição do poder em Bamako por meio de eleição presidencial, realizada em novembro do mesmo ano tendo como vencedor Ibrahim Boubakar Keita (IBK), com 77% dos votos em 2º turno.

Quem são os tuaregues

O povo tuareg representa somente 1,7% da população do Mali (Bambaras são 33%, Fulani 13%, Sarakole 10%, Senufo 10%, Malinke 9%, Outros 23,3%). Apesar disto, os malineses do sul, menos pobres e mais sedentários, consideram-nos culpados por todos os males do país. Sendo nômades por excelência, lutam também contra os colonos que praticam o cultivo a terra.

São pouco mais de 312 mil no Mali e 1,4 milhão distribuídos por Líbia, Niger (onde está sua cidade matriz: Agadez), Burquina Faso e Argélia. Falam o idioma “tomashek” e escrevem pelo alfabeto “tifinay”. Desde suas origens e principalmente no período colonial os tuaregues caracterizaram-se como um povo dedicado ao comercio escravista. Foram eles que “caçaram” negros por toda África para venderem-nos como mercadoria a compradores interessados no tráfico.

Praticam a escravidão igualmente em seu grupo étnico, no qual os negros ou “iklans” são os escravos e constituem a última categoria social. Aí estaria a razão de fundo para sua rejeição e suas guerras contra o estado malinês, no qual se constituiriam em uma província a ser comandado por negros malineses. Desejam um país exclusivamente seu, o Azawad.

Causas da instabilidade

A vinda da missão de paz da ONU em julho de 2013 trouxe apenas mínima estabilidade ao norte onde os ataques às forças francesas, malinesas e mesmo da ONU aumentaram ano após ano, com a violência se espraiando para Timbuktu, Gao, e no centro, para Mopti e Segou, até que chegou a Bamako com ataques a comércios pertencentes a europeus matando 25 pessoas ao que se seguiu um ataque a um resort nas cercanias da capital. Enquanto o governo falhava em demonstrar qualquer condição de enfrentar o caos, as organizações terroristas se fortaleciam, tendo decidido formar um novo Grupo de Apoio ao Islã e aos Muçulmanos (Jama’a Nusrat ul-Islam waal-Muslimim, ou JNIM), o qual em seguida passou a atacar objetivos militares no Mali e em Burkina Faso.

A fim de compreender a extensão da verdadeira dilapidação do Estado malinês e a proliferação da violência política no começo do século XXI, jornalistas ocidentais, governos e especialistas em segurança tendem a focar nas causas mais próximas: radicalização islâmica, corrupção estatal, proliferação de armas de pequeno porte e tensões interétnicas, dando pouca atenção ao contexto histórico, social e político-econômico.

As verdadeiras explicações atenderiam, na verdade, a três tipos de enfoques relacionados a uma mentalidade anti-imperialista, dirigida contra o domínio e à ainda contemporânea influência francesa; geopolítica, abrangendo a competição entre países no Sahel, de início ligada à Guerra ao Terror dos Estados Unidos no governo Bush, mas agravada a partir dos conflitos de 2012, e/ou institucional, atentando para a qualidade das instituições políticas, dominadas pela corrupção, débil infraestrutura e de serviços públicos, que se juntam à ausência de um aparato legal efetivo.

Em boa parte, o Mali nunca se tornou de fato a esperada “joia do império francês” devido à sua falta de significantes recursos naturais. Contudo, a mera possibilidade de que existissem tem habitualmente embasado o discurso e por vezes as ações dos líderes malineses.

Violentos grupos jihadistas no Norte surgiram em consequência da guerra civil na vizinha Argélia durante os anos 1990, constituindo-se em uma ameaça aos governos argelianos desde então. As autoridades malinesas demoraram a reconhecer o jihadismo como um problema, chegando a formular pactos de não-agressão com a AQIM. A situação só mudou com a ocupação de alguns estados e sua submissão a práticas islamistas extremas colocando em sério risco estruturas locais já de hábito muito fracas. Décadas de cooperação militar com Estados Unidos, China ou Rússia, não evitaram que a França se tornasse de novo o mais proeminente ator com respeito à segurança do Mali por meio do lançamento da Operação Serval em 2013, quando o governo francês definiu três objetivos de curto prazo: dar segurança a Bamako e a seus compatriotas aí residentes; restaurar a integridade do país e acabar com a insurgência jihadista. Só o primeiro foi cumprido. Se o colapso do estado malinês foi evitado, a resistência separatista e o ressurgimento da militância jihadista espraiou-se sem controle pelo norte e pelo centro, regiões que abarcam 2/3 do território nacional.

Programas de assistência militar custeados essencialmente pelos Estados Unidos jogaram milhões de dólares em treinamento e equipamento em estruturas incapazes de absorvê-los ou até mesmo de mantê-los, na prática funcionando como um convite às forças rebeldes e jihadistas para que as tomassem.

Concluindo esta análise inicial, de maneira isolada nenhuma das explicações aqui fornecidas consegue dar conta da crise que o Mali enfrenta neste início da terceira década do século XXI. As forças de desestabilização não se materializaram subitamente e sim tomaram forma ao longo de muito tempo. Também, não podem ser compreendidas como primariamente internas ou externas, embora seja verdade que gerações de líderes fizeram as piores escolhas a fim de minar a integridade das instituições nacionais e que as mais negativas consequências tenham sido em muito aumentadas por fatores externos fora de seu controle.

A desestabilização do Mali deve ser reconhecida como uma coprodução de forças que agiram de dentro e de fora do país, numa combinação de elites atuando em proveito próprio e governos doadores esquecidos das consequências danosas de iniciativas que, na verdade. só atendiam suas motivações e finalidades.

Golpes a granel e mercenários russos

A atual onda, que uma vez mais parece interminável, de crises no Mali começou com o Golpe de Estado de 2012, em 21 de março, quando soldados desertores cercaram e invadiram o palácio em Bamako, apoderaram-se dos principais meios de comunicação e forçaram o presidente Amadou Toumani Touré a esconder-se e em seguida renunciar após um ‘acordo” entre os amotinados e a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO). Touré foi acusado de não saber lidar com a rebelião tuareg em Kidal, (no extremo norte, divisa com a Argélia), onde afinal foi declarado o Estado independente de Azawad.

Como de costume, os revoltosos passaram primeiro na base militar de Sundiata Keita (homenagem ao fundador do Império Mali no século XIII e que, certamente, não mereceria ser saqueada em pleno século XXI) para apropriar-se do arsenal para só então, bem armados, rumarem para o palácio em Bamako. Reações de última hora de altas autoridades não conseguem impedir decisões já tomadas. No golpe de 2020, p.ex., o presidente francês Emmanuel Macron inutilmente conversou com seus colegas Mahmadou Issoupou do Níger, Massane Ouattara da Costa do Marfim e Macky Sall do Senegal, apenas para reclamarem dos fatos.

Eleições no ano seguinte elegeram Ibrahim Boubacar Keita, reeleito em 2018 graças a uma calmaria temporária obtida por meio de um Acordo de Paz firmado em Argel em 2015 e aceito pelos vários contendores possibilitando a reunificação territorial de todo o Mali. Isso depois que o JNIM (novo grupo terrorista formado por dissidentes da Al-Qaeda e do EI) atacou a Missão Multidimensional Integrada de Estabilização das Nações Unidas no Mali (MINUSMA).

A rígida Sharia islâmica, imposta nas áreas dominadas pelos seus militantes, obrigava as mulheres a usar o véu completo (burka) ou parcial (hijab que só esconde o rosto); contrair matrimônio forçado inclusive com homens dos grupos armados de forma a legitimar estupros e violações; proibição de votar e de andar em motos com alguém que não o marido; segregação por gênero nas escolas Aquelas que se opunham a cobrir o corpo ou à escravidão sexual eram chicoteadas e lapidadas publicamente, o que forçou muitas a fugirem do país.

Keita, cujo governo já vinha sofrendo com protestos populares, foi deposto por outro golpe militar, dessa vez liderado pelo coronel Assimi Goita. Detido pelos golpistas, Keita acabou sendo removido para os Emirados Árabes Unidos a fim de tratar um derrame cerebral e ao falecer recebeu honras de Estado do próprio Goita que, nomeado vice-presidente de um governo provisório cinco meses depois encontrou motivos para afastar o presidente interino e assumir ele mesmo a presidência no que foi chamado de Golpe dentro do Golpe.

Prometeu eleições para fevereiro de 2022, mas logo desistiu. Deu, então (ao melhor estilo Fujimori), um autogolpe – o terceiro em sequência – e declarou que seu “governo” ficaria cinco anos no poder, ou seja, transferindo as eleições para o final de 2026, numa atitude que de imediato gerou fortes e iradas objeções por parte da ONU e das organizações internacionais envolvidas.

Vieram, então, as sanções determinadas pelo Bloco Econômico da África Ocidental (ECOWAS): embargo das transações comerciais, suspensão da ajuda financeira, congelamento das reservas depositadas no Banco Central dos países da África Ocidental, interrupção dos voos e fechamento das fronteiras, como que isolando o Mali do resto do mundo.

No Conselho de Segurança, Rússia e China bloquearam uma resolução favorável à posição francesa de apoio à ECOWAS. Não por acaso e quase sem alternativas, o governo de Assimi Goita contratou mercenários russos do “Wagner Group”. Os primeiros 500 homens chegaram ao final de dezembro de 2021 em Bamako, rumando de imediato para Timbuctu (centro-norte). No total, de acordo com confirmação do governo Goita, são 1000 “wagners” a um custo de US$ 10,8 milhões ao mês. O grupo foi criado em 2007 por Dmitry Valereyevith, um amigo de KGB de Putin, e foi pela primeira vez detectado no leste da Ucrânia quando batalhões de mercenários não uniformizados surgiram falando russo. Estima-se que hoje já esteja presente em 27 países, incluindo áreas de interesse do governo russo, por exemplo, na Venezuela, Sudão, Síria. Em Timbuctu ocupou as instalações abandonadas pelo exército francês que, depois de colocar 5.000 homens no Mali, decidiu concentrar-se em pontos mais estratégicos em volta de Bamako, a capital.

A Junta Militar comandada por Assimi Goita, autodenominada de Conselho Nacional para a Salvação do Povo, argumenta que os cinco anos previstos para sua permanência são necessários para arrumar o país e realizar eleições justas num país quase rural onde não são os cidadãos que comparecem aos centros eleitorais e sim estes que enviam equipes a percorrer as estradas principais (jamais na época de chuvas) e estacionam em pequenos centros urbanos (ou próximo aos rebanhos de gado assim atraindo os pastores) para os quais acorrem os moradores das periferias mais acessíveis. Ademais, é preciso desarticular as centenas de milícias étnicas que ao longo dos anos se foram formando no Norte e no centro do Sahel, incorporando-as ao exército. Tudo isso realmente não é possível fazer em um mês, conforme o inicialmente prometido, mas são argumentos que ignoram o fato de que este é o mesmo Mali onde algumas eleições já foram realizadas e, bem ou mal, escolheram por maioria os homens que têm governado a nação.

IV – BURKINA FASO

As primeiras décadas pós-independência caracterizaram-se pela mais alta turbulência, entre golpes e revoluções, seguidos por mais de um quarto de século de autoritarismo. Em 2014 uma insurreição popular derrubou o autocrata Blaise Campaoré, levando a eleições democráticas numa demonstração de que uma nova Burkina Faso seria possível.

O Alto Volta passou a constituir uma colônia francesa, em 1919 e desde então os Mossi – que hoje ainda são pouco mais de metade da população burquinense, assumiram posição de maior relevância. Devido a uma ativa resistência, povos como os Bobos, Samos, Lobis, Gouronsis, Gourmanthés e Tuaregues ainda resistiram por anos até serem subjugados pelo poder colonial francês Por seu lado os Mossi desde o começo se acomodaram ao mando do invasor que aceitou um modelo de “comando indireto” que lhe permitia dirigir a colônia com um mínimo de funcionários. Com isso, os Mossi gradativamente se tornaram uma casta privilegiada na sociedade nacional o que, evidentemente, não impediu o surgimento de conflitos.

Os franceses aí não encontraram outros recursos para explorar que não fosse a mão de obra. Pelas suas regras, o “indigenat” (tanto o trabalho quanto o serviço militar) era compulsório. Durante a I Guerra Mundial a França recrutou mais de 200 mil homens nas colônias subsaarianas, com uma significativa proporção do Alto Volta. Eram enviados para trabalhos na construção de ferrovias, estradas e pontes ou despachados para as plantações da Costa do Marfim. No entanto, insatisfeita com seus lucros, em 1932 a França simplesmente suprimiu a colônia incorporando-a à Costa do Marfim com uma menor parcela no Sudão e em Níger. Somente após o final da II Guerra e face à crescente turbulência que assolou seu império africano, em 1947, a França optou por reconstituir o território do Alto Volta exatamente conforme a situação inicial, em setembro de 1947. Bem mais do que um desejo de favorecer a população burquinense de então, o governo francês agiu politicamente a fim de controlar a reação de um grupo de chefes mossi que se haviam aliado ao PCF, o Partido Comunista Francês.

Independência e militarização

A exemplo das demais ex-colônias, a independência foi declarada em 5 de agosto de 1960, não por pressão do povo ou do governo e sim por unilateral decisão da França. Maurice Yaméogodo, um mossi, 1º presidente, rapidamente começou a repressão fazendo um governo autoritário que cinco anos depois foi deposto com o povo nas ruas gritando: “Militares no Poder”. Assim foi, mas com uma consequência óbvia: os fardados gostaram da ideia e não mais deixaram de governar substituindo uns aos outros por meio de interminável sucessão de Golpes de Estado.

O nome do país foi mudado para Burkina Faso (a “Terra do Povo Certo”), pois seus residentes sempre foram conhecidos como burkinabés, mas a sina de trocar governos de curta permanência com as mais diversas orientações políticas, manteve-se até que em outubro de 1987 o capitão Blaise Camporé, com o apoio do governo pró-França da Costa do Marfim (com cuja filha adotiva Camporé se casou), assassinou o capitão precedente Thomas Sankara e conseguiu ficar 27 anos no poder, graças a um bem articulado suporte militar e o silenciamento de opositores via repressão, prisão, tortura ou exílio.

Ao final dos anos 2000 Camporé conquistou o apoio norte-americano ao se associar à campanha antiterror no Sahel. Com ele vieram o Banco Mundial e o FMI com seus programas de “ajuda”, traduzidos em privatizações abruptas, liberalização geral do comércio nacional e internacional, cortes dos gastos estatais com diminuição dos empregos no setor público e os produtos domésticos incapazes de fazer frente à entrada de produtos baratos de fora, o que levou a mais desemprego e a serviços de educação e saúde cada vez mais restritos e menos acessíveis à população. Em compensação, Burkina Faso viu sua economia crescer 5,9% ao ano entre 2005 e 2013 graças à produção das minas de ouro e à colheita de boas safras de algodão. Inevitavelmente em paralelo cresceram as desigualdades com as Nações Unidas constatando (em 2003) um Índice de Gini de 50,6 o que colocava Burkina Faso como um dos mais desiguais da África e do mundo.

A constatação de corrupção pelas elites e enriquecimento desproporcional da família do presidente não causou qualquer surpresa. O assassinato de um jornalista pelo Regime de Segurança Presidencial fez crescer as resistências ao seu governo até provocar-lhe o colapso. Com a capital Uagadugu ocupada por manifestantes em 30 de outubro de 2014, Camporé fugiu para a Costa do Marfim sob intensas manifestações populares de júbilo.

Afinal, um novo pleito elegeu ao final de 2015 a Roch Marc Christian Kaboré, um político comprometido com as elites e a “velha política”, incapaz de solucionar os vários conflitos no país e em seu entorno. Afora o agitado dia a dia do Mali nos anos 1970 e 1980, explodiu a guerra civil na Costa do Marfim (2002 a 2011). O papel mediador do governo burkinabé precedente desapareceu com Kaboré que se viu às voltas com múltiplos ataques terroristas (em pleno coração de Uagadugu em 1/2016, 8/2017 e 3/2018, promovidos pelas facções da AlQaeda (AQIM e GSIM) presentes no Sahel. De súbito, um novo grupo interno, o Ansarul Islami (Defensores do Islã) liderado por uma figura nacionalmente conhecida, o Imã Ibrahim Malam Dicko da cidade de Djibo no Nordeste, atacou escolas e professores forçando-os a abandonar as cidades.

País sem saída

No auge do vendaval terrorista, no dia 25 de junho de 2021 um grupo em motocicletas invadiu, atirando sem parar, as cidades de Solhan e Tadarsky junto à divisa com o Mali e matou 174 pessoas. Testemunhas afirmaram que os atacantes tinham entre 12 e 14 anos comentando que foram “crianças matando crianças”.

Em síntese, na ofensiva jihadista desde 2015 estima-se que mais de 300 pessoas morreram, 500 escolas fecharam e 40 mil saíram de Burkina Faso. Existem 200 partidos com 7 representados na Assembleia Nacional, mas quem se destaca é um novo grupo, o “Balai Citoyen” (Os Cidadãos Letrados) do cantor de reggae Sams’K e do rapper Serger Bambara, o Smockey. A exploração mineira expandiu muito desde o final dos anos 2000 (ouro e zinco). Curiosamente não há conflitos raciais. 60% da população de Burkina pratica o islã, 25% são cristãos e 15% animistas, mas na etnia predominante dos mossi essas proporções são iguais, com 1/3 para cada uma. Pelas previsões da ONU os atuais 21,8 milhões de burkinabés serão 45 milhões em 2050.

O presidente Kaboré também não resistiu a seus colegas de armas e em fevereiro de 2022 o Tenente Coronel Paul-Henri Damiza com seu “Movimento de Proteção e Restauração” derrubou-o. Ele é parte de uma tendência no Sahel a presidentes jovens e em geral todos formados na École de Guerre de Paris. Tem 41 anos, a mesma idade do Cel. Mamady Dombouya que tomou Guiné-Bissau em janeiro e dois anos a mais que Assimi Goita do Mali.

Segundo um político da oposição, Victorien Tougouma, “aqui, sempre que há um problema, os militares são incitados a tomar o poder”. Dessa feita, a CEDEAO representando os países africanos ocidentais, suspendeu a participação de Burkina Faso, o que sem dúvida não interromperá a fúria golpista dos coronéis que se julgam os únicos comandantes para suas pobres nações.

V – NÍGER

O Níger é o último país do mundo quando visto pelo Índice de Desenvolvimento Humano; seu PIB per capita o coloca em 182º lugar entre 186 países e, na África, em 49º entre 53, superando apenas à República Democrática do Congo, República Centro Africana, Burundi e Somália. 75% do país é coberto pelo deserto do Saara, conhecido como Ténére onde encontrar água consiste em missão praticamente impossível, mas quase no meio das areias está Agadez, a cidade por essência dos tuaregues e também o paraíso do contrabando e do tráfico humano. O sul é mais fértil e lá se produz sorgo e painço (milheto, no Brasil usado como comida de passarinho, mas no Níger é alimento usual na dieta humana), trata-se o gado e se colhe leite de vaca, cabra ou de camela e se minera muito ouro, enquanto os antílopes – típicos do país – continuam a saltar imunes às confusões armadas pelos homens. Sem litoral, 81% da população é analfabeta, mas, sob uma taxa de natalidade de 6,95 filhos por mulher, entre as mais elevadas da Terra, os quase 26 milhões de habitantes atuais serão 50 milhões em 2.040 e 100 milhões em 2.068. As estradas são poucas, ficam intransitáveis na estação das chuvas e, segundo comentário do New York Times, são “roads for nowhere”, ou seja, que levam a lugar nenhum.

História de contradições

De cada cem nigerinos noventa e nove são islâmicos sunitas, em geral da etnia dos hauçás (55%) que supera a dos zarma (21%), tuaregues (9,3%), fulas, canúbis, e outras, numa mescla que não gera conflitos étnicos nem religiosos de vez que todos conseguem conviver pacificamente e os casamentos entre etnias distintas são comuns. Isso em boa parte se deve a que a influência francesa, mesmo na arquitetura, foi bem menor do que nos outros países da região. Entre 1940 e 1945, p.ex., os franceses concentraram sua presença e interesses na costa, permitindo que a governança islâmica se fortalecesse.

Inicialmente o movimento Sawaba de orientação socialista, com Djibo, e Bakary, era muito forte, mas quem se impôs foi o primo Hamani Diori, um conservador, tornando-se o primeiro presidente para, em seguida, reprimir com violência os sawabas.

O idioma francês continua sendo de uso oficial, no entanto raramente é falado, pois o povo prefere comunicar-se em árabe, buduma, fula, hauçá e em uma miríade de dialetos tribais. A vida não é tão dura fora do deserto, no vale do rio Níger e nos limites do rio Congo onde estão algumas planícies e as falésias nas belíssimas montanhas de Air que se estendem e cruzam o país de norte a sul. Níger significa “rio entre rios”, mas as águas só fluem em abundância em julho e agosto com as chuvas torrenciais que não conseguem compensar os meses mais secos, de setembro a dezembro quando a temperatura pode atingir os 45º entre janeiro a abril.

Em 1994 o governo concordou com o programa de ajustes econômicos proposto pelo FMI, viabilizando a redução pelo Clube de Paris à metade das dívidas do Níger. No ano seguinte foi assinado um acordo de paz com os rebeldes tuaregues incluindo anistia a combatentes e investimentos no Norte.

Contudo, em janeiro de 1996 outra quartelada militar, como parte de uma sequência de golpes e contragolpes, desestabilizou o país.

A Estrada Nacional Nº 1 conduz os viajantes até Diffa, cidade com 167 mil habitantes que é o ponto final para refugiados dos ataques terroristas pelo Boko-Haram cuja sede é na vizinha Nigéria.

O tráfico em Agadez

A etnia tuareg, disseminada por vários países na região, escolheu a cidade de Agadez, um oásis no Saara nigerino, como sua “pátria” por volta do século XIV. Agadez (124 mil habitantes na área urbana) em meio ao deserto de Ténére – como é conhecido por ali o Saara, está a 952 km numa viagem de carro até a capital Niamey. Há 800 anos lugar de paragem de viajantes, localiza-se na região montanhosa de Air, 380 km a leste da fronteira com o Mali. O centro da cidade - Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO - está dividido em onze quadras nas quais se multiplicam as obras de terra, incluindo a famosa “mesquita de lama” com minarete de 27m, o mais alto do mundo com esse material e em volta da qual a cidade se desenvolveu. As ruas de areia, por tradição, são escrupulosamente limpas.

É possível dizer que desde sempre caravanas traziam suas cargas de ouro e sal a esse longínquo oásis pouco a pouco transformado em cidade com tijolos de barro. A queda de Muammar Kaddafi (em 2011) fez com que voltassem a funcionar os caminhos do contrabando, do tráfico de escravos e hoje principalmente dos migrantes que sonham em chegar à Europa e do comércio ilegal de tudo um pouco entre a Líbia, a Argélia e o Níger, fazendo com que a pequena Agadez se transformasse na verdadeira capital do contrabando e principalmente do tráfico humano no Subsaara.

Diante de enormes riscos de serem surpreendidas por bandidos, caírem em redemoinhos de areia ou simplesmente se perderem em meio às imensas dunas móveis, caravanas semanais deixam Agadez em comboios que formam longas colunas precedidas por veículos militares que em princípio lhes garantem certa segurança. Toda 2ª. feira a cidade ferve com o movimento das Toyotas que logo esgotam sua lotação com uma carga humana que se comprime na caçamba traseira onde a única salvação contra a queda nos solavancos da inexistente “estrada” é uma barra de apoio onde todos tentam segurar.

Não há mais turistas desde que os terroristas do Boko Haram, uma espécie de filial da AlQaeda, começaram seus ataques. Pelo menos 180 mil migrantes passam por Agadez a cada ano, jogando aquela que pode ser a última cartada de suas vidas. Não existem problemas formais para o acesso à cidade ou para dirigir-se a um país vizinho, pois segue vigente o Protocolo do CEDEAO que dá direito ao menos por 90 dias à livre circulação de qualquer nativo dos 15 países pertencentes à organização. Ao chegarem é preciso encontrar um intermediário, em qualquer idioma: um smuggler (contrabandista), casseur (caçador, moço de recados), rebateur (facilitador dos obrigatórios regateios de preços), ou quem encaminhe as meninas vendidas pelas famílias para as redes de prostituição. Em geral já tem uma referência, o nome de alguém indicado por algum parente ou amigo e muitos fazem o pagamento adiantado, cerca de 3.000 dólares até Tripoli na Líbia, a fim de evitar serem roubados no caminho, através do popular sistema Western Union de transferência de dinheiro. Na cidade dos tuaregues as diversões são poucas. O famoso mercado de camelos fica distante já numa rota pelo deserto, mas só tem interesse para quem quer fazer negócio ou comprar leite de camela.

A viagem é de alto risco. São 2.800 km pelas areias eternas do Ténére onde tudo depende do motorista da picape Toyota Hylux, (cabine simples ou dupla, vendida no Brasil por R$ 220 mil), considerada a melhor para superar o deserto. Ele precisa ser um especialista e ter experiência a fim de não se perder ao lado das grandes dunas, pois se isso ocorrer ele nunca mais achará o caminho. Há bandidos comuns, jjihadistas, contrabandistas rivais, ladrões de carros que abandonam o motorista no deserto, onde sem água não é possível sobreviver. Os que chegam na Líbia, por vezes deixados em Sabha, mais de 700 km antes da capital, se forem assaltados e ficarem sem dinheiro tornam-se escravos nas mãos dos tuaregues cujas tribos continuam controlando a travessia do deserto e são remunerados por fora por esse serviço. Como garantia, um deles acompanha a caravana das picapes e o faz montado numa moto (em geral uma Yamaha Ténére 700 que até no nome sugere sua adaptação às areias em volta de Agadez). As opções para aqueles que não têm como prosseguir são poucas, uma vez que o custo para retornar a Agadez equivale ao da travessia pelo mar.

O passo seguinte é a travessia do Mediterrâneo nas barcaças que saem da costa líbia até as ilhas italianas. Morrem mais pessoas no deserto do que no Mediterrâneo. No islamismo tudo é culpa ou uma benção divina: “se Alá escreve que você vai morrer no deserto, então é assim que você vai morrer”, disse Musa, um smuggler, em entrevista ao The Washington Post. Novas leis tentam coibir esse mercado com mínima eficácia. Na prática, o pagamento de propina para os envolvidos nessa vasta rede que sem dúvida inclui a polícia, o Exército, os políticos e virtualmente cada um dos moradores de Agadez, é essencial à própria existência do antigo páramo dos nômades tuaregues. Contudo, por mais arriscada e improvável que seja uma trajetória como essa, não são poucos os africanos que conseguem acesso à Europa.

VI – CHADE

Desde a independência, em 11/1/1960, a repressão governamental conduz aos Golpes de Estado. Caso tenha sucesso o povo fica otimista quanto ao futuro, mas administrações desastradas causam desapontamento, nova insurgência e novo golpe, em geral apoiado por forças externas.

Seis décadas depois o ciclo permanece e a única diferença é que desde dezembro de 1990 todos os golpes falharam, uma vez que o presidente Idriss Déby conseguiu manter-se no posto. Antes ele já havia comandado, durante o “setembro negro”, um genocídio destinado a eliminar os Sahr e Hadjarai, as elites do sul. Graduado pela École de Guerre de Paris, Déby é do grupo étnico Zaghawa e derrubou Hissène Habré, de quem fora Ministro da Defesa. Suspeito de armar um golpe contra seu chefe, ele fugiu para o Sudão enquanto dois outros ministros eram torturados e logo executados. Lá montou o Movimento Patriótico da Saúde e uma nova rebelião com homens treinados pelo regime sudanês com financiamento da Líbia e da França.

A destituição de Habré aconteceu quando ele já havia deixado o país levando milhões de dólares, carros, a família e amigos próximos em voo providenciado pelos Estados Unidos rumo a um destino já negociado com os franceses no Senegal. O seu destino final tornou-se um caso exemplar e único na África moderna, pois em 2013 após anos de vida sossegada em Dakar foi submetido a julgamento por um Tribunal Especial da União Africana sendo condenado à prisão perpetua por crimes de guerra contra a humanidade e pela prática contumaz de tortura, algo até então inédito no continente. Habré, que é da etnia Tubu (vide próximo item), tido como o “Pinochet da África”, segundo o advogado do Tribunal, “ficará na história como um dos ditadores mais impiedosos do mundo, por ter massacrado seu povo, incendiado aldeias inteiras e enviado mulheres para servirem como escravas sexuais para suas tropas”. Uma advogada representante das vítimas afirmou que “a morte de Habré não absolve o Chade ou a União Africana de indenizar suas vítimas”.

O reinado de Déby

Na verdade, nenhum governo do Chade surgiu de um processo minimamente democrático e inclusivo. Um exemplo, de janeiro de 1981, deu-se graças a Kadhaffi que em seu sonho de criar um “Grande Estado Islâmico do Sahel” projetou uma união completa entre Líbia e Chade. Então, Estados Unidos e França apoiaram um golpe de Hissène Habré para derrubar Goukouni Ueddei. Kadhaffi, que sempre dera suporte a Habré, passou a apoiar Déby e algumas vezes até pagou diretamente seus adversários políticos para acalmar resistências ao governo chadiano da vez.

Contra tudo e contra todos, o Chade permaneceu ao lado de Kadhaffi até o fim, só o abandonando quando ele saiu de Trípoli e apesar de que a França – na ocasião um dos mais fortes aliados do Chade de Déby – esteve entre os mais ativos atiradores no bombardeio à Líbia.

Em 2013 o Chade juntou-se à França para lutar contra a insurgência no Mali, mesmo porque desde então a luta o enfrentamento ao terror tornara-se central na agenda externa no Sahel. O país forneceu 1447 soldados às tropas do MINUSMA, a missão de estabilização no Mali da ONU. E é bom lembrar que o comando da missão francesa Barkhane no Sahel no fim de 2017 localizou-se em N’Djamena.

Ou seja, França e Chade sempre foram mutuamente dependentes, ao passo que os Estados Unidos ativamente deram suporte aos diversos regimes que se sucederam desde a independência. O presidente Reagan (1981-1989), p.ex., custeou boa parcela da rebelião de Habré contra o regime de Goukouni porque este era pró-Kadhaffi e em junho de 87 Habré foi recebido na Casa Branca após uma força conjunta Chade-França-EUA ter ocupado a Líbia. Obama, por sua vez, ajudou a bancar Déby na Operação Contraterrorista Transaariana, também destinada a proteger o oleoduto do sul do Chade até o Golfo de Guiné construído por um consórcio norte-americano.

Novo golpe

O atual presidente chadiano desde abril de 2021 é Mahatma Idriss Déby de 37 anos, filho de Idriss Déby que morreu baleado num confronto.

Déby-pai governou por mais de três décadas e, nas eleições de abril de 2021, acabara de ser reeleito por ampla maioria para um 6º mandato quando um porta-voz do governo anunciou ao povo que ele não resistira aos ferimentos a bala recebidos ao comandar as forças do Exército numa batalha contra a oposicionista “Frente para a Mudança e Concórdia no Chade” – FMCC que invadira o país a partir da fronteira líbia. Governou despoticamente, mas era tido como a melhor garantia de enfrentamento do terrorismo e não sem razão Macron declarou: “a França perdeu um bravo amigo”.

Mantendo a tradição guerreira dos militares chadianos, Déby que recém completara 68 anos, fazia questão de pessoalmente comandar suas tropas, como ocorrera no ano anterior em uma batalha contra o grupo terrorista do Boko Haram no Lago Chade. Apesar da afoiteza com que abandonava o palácio para expor-se ao combate frontal contra o inimigo, não esperava morrer tão cedo e nem pensou em preparar um sucessor. O povo, que em maioria tem menos de 30 anos e nunca conheceu outro presidente, ficou estupefato

De imediato o comando militar reuniu-se e declarou que o jovem general Mahatma Déby, até então Comandante em Chefe da Guarda Presidencial da Boina Vermelha, estava empossado como presidente interino. Dissolveu a Assembleia Nacional que corresponde ao Congresso e prometeu “eleições livres” dentro de 18 meses. Além disso a Constituição foi revogada, pois previa a posse imediata do presidente da Assembleia Nacional. Com os líderes da oposição à frente, o povo inutilmente foi para as ruas aos gritos de que “o Chade não é um país de guerreiros (os militares é que são) e não é uma monarquia”, clamando por uma transição pacífica para um poder civil, mas o resultado das manifestações em N’Djamena foi o fuzilamento de nove ativistas. Nove meses depois o governo de plantão anunciou a formação de um Conselho Nacional de Transição com 98 membros, do qual nenhum chadiano espera que saia alguma coisa de concreto.

O Chade está longe de ser um país politicamente pacífico. Seus intermináveis governos militares conduziram o país a um ambiente de permanente conflito. Não obstante hoje, apesar de tudo, existe uma oposição civil minimamente estruturada que luta por uma pátria mais livre, embora paralelamente os rebeldes da Frente para a Mudança e a Concórdia no Chade – FMCC que, junto a outros grupos, por três vezes em 2006, 2008 e 2019 chegaram perto do Palácio na capital, voltaram a atacar em abril do ano passado por não concordarem com a nomeação de Déby-filho.

São, basicamente, rebeldes étnicos da raça Gorane, mais conhecidos como Tubu, e tem suas bases de operação nas montanhas Tibesti, um extenso maciço que se estende entre o sul da Líbia e o norte do Chade (onde também se encontram tribos nômades tuaregues que em geral se aliam aos grupos em guerra). Opõem-se a Idriss Déby desde que este tomou o governo em 1990. Nos intervalos de seus ataques a cidades chadianas, vendem seus serviços como mercenários a alguma das muitas forças em luta na guerra civil da Líbia, entre as quais está o Exército de Salvação Nacional – ESN do marechal líbio Khalifa Haftar.

Já apoiaram fortemente a Haftar na mais forte ofensiva feita para ocupar Trípoli há dez anos. No entanto os interesses do presidente chadiano Déby-pai com seus recursos financeiros e tropas, acabaram se impondo. Receoso de que os rebeldes se fortalecessem ao ponto de derrubá-lo, convenceu o marechal líbio a se voltar contra os rebeldes chadianos, bombardeando-os, num esquema que ainda funcionou em 2021 ajudando o Exército chadiano, leal a Déby-filho, a mantê-lo no poder.

As trocas de opiniões e de lado na Líbia são típicas de uma situação marcada pela instabilidade, influenciando por vezes de forma clara as lutas políticas no vizinho Chade. Analistas que acompanham a evolução dos fatos depois da eliminação de Khadaffi, dizem que a atual guerra fratricida se caracteriza como um confronto multinacional totalmente privatizado, sem Exércitos, travado por milicias locais e mercenários estrangeiros. O Governo de Unidade Nacional que governa a Líbia em Trípoli com apoio da ONU, dos Estados Unidos, Itália, Turquia (e, só no papel, de múltiplos países ocidentais), enfrenta o TCM de Haftar que, além de ser subsidiado por Rússia, França, Egito e Emirados Árabes Unidos, contrata combatentes de ocasião sírios, sudaneses e principalmente os Wagners russos (também atuantes no conflito do Mali).

Petróleo falha contra a pobreza

A localização de reservas equivalentes a 1,5 bilhão de barris de petróleo, 10ª. maior da África, fez com que este logo se constituísse na principal fonte de receita pública para o orçamento nacional, pois 90% da produção de 140 mil barris/dia é exportada. A indústria do petróleo local é dominada pela China National Petroleum Company no Chade (CNPCIC), o consórcio Esso Exploration & Production Chad Inc. (EEPCI) e a Taiwanese Chinese Petroleum Corp. A EEPCI inaugurou a produção de petróleo do país em 2003 e detém o controle acionário do oleoduto Chade-Camarões de 1.100 km através do qual todas as exportações chegam ao porto de Douala. Uma joint venture entre a CNPCIC e a estatal petrolífera do Chade, A Societé des Hydrocarbures du Tchad (SHT), refina 20 mil barris de petróleo por dia para exportação e consumo doméstico a 40 km de N'Djamena. O setor de gás natural é incipiente. 

O próprio Banco Mundial (BM), que subsidiou as extrações do óleo, em um Informe de 2021 reconheceu que “a produção de petróleo não ajudou a reduzir a vulnerabilidade econômica do Chade porque as atividades das companhias são altamente concentradas, intensivas em capital e dependentes das importações. O único link entre o setor petrolífero e a economia nacional se dá através dos investimentos relacionados diretamente à produção”.

Com uma população ocupada essencialmente em atividades agropastoris, o petróleo chegou a representar 16% do PIB nacional em 2012, mas caiu para 3% em 2016 e 9% em 2021. Três de cada quatro chadianos sofrem insegurança alimentar e, apesar do óleo, a taxa de pobreza pouco diminuiu nos últimos anos. A economia, após uma aparente recuperação no biênio 2015-16 voltou à recessão em 2020 (menos 0,9%) devido à Covid, à queda nos preços internacionais do barril de petróleo e do algodão.

O resultado é que o Chade se mantém como uma das mais pobres nações do planeta, classificado em 183º lugar pelo IDH num total de 187. O analfabetismo cresceu de 33% para 45% em menos de uma década. Ainda de acordo com o BM, “a economia experimentou grandes mudanças macroeconômicas desde a emergência do setor de óleo no começo dos anos 2000, mas o retorno desse crescimento largamente falhou em alcançar os pobres. Vale acrescentar que 83% dos chadianos vivem na zona rural, ao passo que o explosivo crescimento populacional (5,8 filhos por mulher) se encarrega de minar toda e qualquer melhora na economia.

4. Construção dos estados e da sociedade

Os países sahelianos claramente exibem uma certa semelhança familiar que os distingue dos países costeiros e florestais na África Ocidental, mas é difícil de definir. Baseia-se no clima comum e no contexto ecológico e agropastoril? Ou seria um ponto relacionado às castas e classes em que se baseiam as suas sociedades, supervisionadas por grupos sociais aristocráticos nos quais os relacionamentos operam sem problemas entre grupos sociais desiguais? Talvez devido ao papel crucial das migrações aos países da costa do Golfo da Guiné? O que a respeito da hegemonia do Islã? Ou de um passado glorioso cantado em prosa e verso? Nenhum destes fatores por si só é suficiente para explicar, embora cada um tenha seus grãos de verdade.

Ao mesmo tempo, cada um tem muito em comum com os outros países francófonos e não só porque eles experimentaram a mesma ocupação colonial que radicalmente alterou o curso de suas histórias, mas porque ainda hoje estão sujeitos ao “regime de ajuda internacional”, sendo dependentes dos doadores do Norte.

Por todo um século as sociedades e estados da região não seguiram seus próprios ritmos e trajetórias. Viveram um considerável grau de desordem no século XIX, devido em parte às jihads dos Fulani e da escravidão praticada para propósitos internos do tráfico transaariano. Estas mudanças aceleraram-se após a independência com o progressivo abandono de uma parte significativa de seus valores, costumes e relacionamentos tradicionais. A emergência de novas formas de relacionamento com a dramática urbanização e a intensificação dos fluxos migratórios, a integração no processo de globalização, o foco econômico na importação&exportação e mais recentemente no desenvolvimento do islã fundamentalista: todos como fatores direcionadores das mudanças sociais, num processo em que as sociedades sahelianas tornaram-se cada vez mais diversificadas e marcadas por crescentes divisões.

Em contraste, os países do Sahel são relativamente estandardizados. Eles foram criados brutalmente, do nada, e foram construídos conforme um modelo atípico de Estado, aquele do Estado colonial. Tal modelo, despótico por natureza e virtualmente idêntico pela África Ocidental Francesa, embora diferente do modelo de Estado adotado na própria França. Desenvolveu-se uma cultura burocrática muito específica e uma quase-privada monopolização por uma elite orientada para os negócios.

Hoje, os países africanos em geral e no Sahel em particular confrontam-se com uma generalizada descrença por parte de seus cidadãos com um criticismo crescente de seus métodos de governança, além de uma séria crise pela descrença nos serviços estatais.

Tradicionalismo e o legado colonial

Uma teoria largamente aceita é a de que o Estado africano atual é ainda um estado de estilo ocidental, importado, que é alheio à cultura local e foi imposto a povos que permanecem tradicionais por natureza.

Embora seja verdade que exista um “gap” entre Estados e sociedades, esta teoria é incorreta. Primeiro porque não são menos “tradicionais” do que aquelas da Noruega ou Itália; segundo porque se as administrações foram originalmente coloniais, sucessivos regimes nestes últimos sessenta anos se apropriaram e modelaram os países de acordo com sua vontade e em seu próprio benefício. A discrepância entre os Estados contemporâneos e suas sociedades não pode ser explicado por seu prévio “estrangeirismo”, mas principalmente pela sua captura por elites políticas nacionais e por sua incapacidade na oferta dos serviços públicos. Considerando que nos dias atuais as práticas são bem distantes daquelas mais “tradicionais”, parece mais apropriado denominá-las de “neo-tradicionais”.

Mesmo o exercício da liderança mudou e já quase não tem a ver com a dos ancestrais dos tempos coloniais, cujo poder fundava-se nas guerras e na formação de emirados, reinos ou confederações nômades que reinavam sobre territórios que diferem substancialmente da realidade corrente. Tais lideranças baseavam-se na escravidão e no poder exercido por meio de práticas animistas. Hoje as chefias são estabelecidas e pagas pelo Estado, do qual elas constituem o nível administrativo mais baixo. Onde as comunidades estão islamizadas e o wahabismo predomina, elas precisam assegurar sua fidelidade e crença em Alá.

As grandes propriedades dos velhos tempos que eram típicas das enormes famílias sahelianas, com dezenas de pessoas de distintas gerações trabalhando em uma única unidade de produção, desapareceram. As maiores famílias ainda retêm alguma relevância social, mas 40% ou mais da população do Sahel agora vive nas cidades e dezenas de milhões migraram permanente ou temporariamente e não apenas para a Europa (especialmente para países costeiros na África). Até os cultos religiosos de origem pré-colonial que ainda existem e resistem aos furiosos ataques dos clérigos muçulmanos têm sido profundamente alterados.

Uma conclusão teórica a partir de tais constatações indica que o tradicionalismo e as práticas culturais sobreviventes do passado já não conseguem explicar as sociedades atuais. Isto não significa que a herança cultural do período pré-colonial desapareceu, mesmo porque muitas das práticas e normas culturais de hoje têm suas raízes no século XIX ou antes. Elas, porém, evoluíram e em muitos casos mudaram radicalmente e como precisam ser aplicadas em contextos diferentes assumiram distintos significados. O caso da escravidão é emblemático. Uma prática socialmente central no século XIX sendo usual como tráfico de pessoas ou domesticamente, sem dúvida deixou sua marca nas lembranças das pessoas, mas em stricto-senso como um sistema de produção e comércio foi abolida, com a notável exceção das sociedades dos Moors. A moderna escravidão persiste como prática corrente em relação às petit-bonnes (criadas, em geral meninas) e às empregadas domésticas.

Pode-se, ainda, considerar o exemplo dos povos nômades, em particular os Tuaregues, Fulbes e Tubus. Sua histórica mobilidade baseada numa economia pastoral tem sido substituída pela prática do contrabando e do tráfico (cigarros, drogas, armas e migrantes), em geral ligada aos movimentos separatistas e jihadistas. Continuam, no entanto, a criar gado usando métodos extensivos de pastoreio e de migração sazonal. Frente às duras mudanças a que são submetidos, os costumes de nomadismo passam cada vez mais a ser sedentários concorrendo pelas terras com povos desde sempre dedicados à agricultura, o que provoca crescentes disputas (e justifica, para eles, o emprego de mão de obra escrava).

Situação atual

A imensa fragilidade dos países sahelianos, a qual se deve em grande parte ao fato de que eles ainda estão em construção e também a outros fatores como a herança colonial, a dependência de ajuda, a captura pelas elites o que não deveria, entretanto, levar a que se os considere como estados falidos.

Mesmo o Mali, apesar de que seus territórios ao norte estejam nas mãos de grupos armados e de traficantes de drogas, permanece como um Estado real em sua região sul. Em outras palavras, um mínimo de serviços estatais é assegurado, mesmo que de maneira insatisfatória.

Estes países não funcionam como aqueles da Europa Ocidental ou da América do Norte. Entretanto, os países do Sahel possuem governos, em alguns casos são fortemente governados; a infraestrutura está melhorando apesar da corrupção e dos altos custos provocados pela baixa qualidade dos serviços e, finalmente, os cidadãos em toda parte expressam uma forte demanda por serviços públicos.

As sociedades sahelianas são perpassadas por múltiplas clivagens – social, regional e religiosa – as quais põem em xeque sua estabilidade ameaçando o futuro.

A primeira diz respeito ao incrível enriquecimento de elites política e de negócios, evidenciada pela proliferação de edifícios ostentatórios e da especulação imobiliária em contraste com a precariedade e pobreza da zona rural e das periferias urbanas. Na ausência de industrialização o predominante setor informal que caracteriza o contexto urbano não consegue absorver as massas de desempregados jovens que, então, engrossam as fileiras dos fluxos emigratórios.

O êxodo rural se deve a que o solo é super explorado e os ganhos em produtividade agrícola são fracos; a exportação das colheitas como amendoim e algodão têm experimentado crises recorrentes devido às flutuações dos mercados globais ou pelo manejo incompetente por parte das instituições responsáveis, ademais dos efeitos sobre o desemprego do baixo nível educacional e de taxas de nascimento demasiado elevadas.

A classe média, historicamente débil na região, está se expandindo, mas seus membros estão desiludidos pela falta de oportunidades concedidas pelas elites.

A segunda clivagem, que acontece pelo padrão de frustrações da população marginalizada resultando no surgimento de grupos separatistas em especial nas fronteiras impingidas pelos colonialistas. Este tem sido o caso não só do Mali, mas igualmente no conflito de Casamance no Senegal e dos tuaregues e tubus no Níger e no Chade, onde os movimentos secessionistas convivem e seguidamente colaboram com os grupos jihadistas, complicando ainda mais as coisas.

Por fim, as divisões religiosas decorrem de que os últimos trinta anos se viram marcados por crescente intolerância religiosa no Sahel, o que está relacionado ao crescimento do fundamentalismo por um lado e pela crescente fragmentação resultante do sectarismo dentro ou nas margens das principais religiões (cristianismo e islã).

Nas sociedades predominantemente muçulmanas da região a mais visível manifestação deste fenômeno é a severa onda do wahabismo, embora o discreto avanço dos pentecostais não deva ser ignorado. “Empresários político-religiosos” por vezes assumem um papel que é similar ao dos movimentos populistas europeus. Outras vezes, “Empresários religioso-militares” podem oferecer e organizar um canal para a violenta rejeição do “sistema”. Grupos extremistas como o Movimento para a Unidade e a Jihad na África Ocidental ou o Boko Haram claramente demonstram que as organizações jihadistas no Sahel não são meramente uma expressão paradoxal da intolerância wahabista e sim conseguem por vezes assumir uma identidade local que é vista positivamente como um desafio pelas massas de desempregados de baixa escolarização.

A mais do que necessária reforma dos serviços públicos afigura-se como essencial para restabelecer um mínimo de confiança entre os Estados sahelianos e seus cidadãos. No entanto, essa reforma não pode vir de fora, ser promovida pelos especialistas internacionais e pelos doadores de ajuda.

As inumeráveis reformas externas tem falhado e continuarão a falhar; apenas reformadores internos poderão assumir esta tarefa, modificando a forma de operar das administrações e melhorando a qualidade dos serviços proporcionados à população, pois somente eles estão familiarizados com a realidade do dia a dia nos contextos locais e nacionais, começando pela reforma dos comportamentos e práticas atuais, ao invés de constantemente introduzir novas leis cada vez mais sofisticadas e burocráticas leis oficiais.

Bem poucos “reformistas internos” de fato existem, mas eles existem — apesar de invisíveis ao nível dos tomadores de decisão e da mídia. Nós os encontramos no curso de nossas pesquisas, dentro das agências administrativas. Na maioria dos casos eles são ignorados por suas hierarquias, isolados e em geral desencorajados ou até sancionados por seus esforços. Por difícil que este desafio possa ser, uma estratégia para apoiá-los dando-lhes apoio e reunindo-os, dando-lhes uma voz, pode ser o melhor caminho de ora em diante.

5. Militares nas políticas sahelianas

Seguindo-se à independência da França, cinco dos seis países sahelianos submeteram-se a longos períodos de comando militar. No Níger, Mali, Burkina Faso e Mauritânia as Forças Armadas estabeleceram ditaduras militares nos anos 1960 e 1970. No Chade elas se mostraram incapazes de evitar a desintegração do Estado o que, ultimamente, levou à sua própria desintegração. Apenas no Senegal um comando civil permanece no poder.

O começo da liberalização política no Sahel no início dos anos 1990 modificou o relacionamento entre civis e as elites militares. Esforços domésticos e internacionais produziram um relacionamento diversificado na Mauritânia onde as Forças Armadas (FFAA) mantiveram um nível de leve supervisão sobre o sistema político. O golpe militar de 2005 conduziu o país à sua primeira eleição multipartidária e ao retorno do governo civil desde 1978. O interlúdio civil teve vida curta e em agosto de 2007 oficiais militares novamente sacaram o governo para colocar a eles mesmos no poder. Em Burkina Faso as Forças Armadas entraram nos anos 1990 na condição e base principal do governo de Blaise Compaoré. Diferentemente do que se passou na Mauritânia os militares burkinabé apoiaram o golpe civil contra o regime de Compaoré em 2004.

No Níger e no Mali as relações civil-militares seguiram caminhos diversos. A armada nigeriana afastou-se de má vontade do poder no início dos anos 1990. Já no Mali as Forças Armadas pavimentaram o caminho para a mudança democrática, embora pouco mais tarde tenham considerado que o governo civil falhou em conter o avanço tuareg e retomaram o comando do país (como de novo o fizeram em 2020). Senegal e Chade constituem pontos fora da curva. Em Dakar o comando civil nunca foi contestado a sério. Já no Chade é difícil falar em um Exército nacional pois o país permanece assombrado pela desintegração nacional e pela personalização da política.

Causas e resultados dos golpes militares

A literatura costuma identificar alguns fatores que conduzem às intervenções militares: crises econômicas no contexto de generalizada pobreza, ausência ou falta de confiança nas administrações civis, instabilidade política, gridlock (impasse) institucional, tensões sociais e tratamento inadequado das Forças Armadas por civis. Não surpreende, portanto, que a maioria dos golpes militares na África não derramam sangue e enfrentam pouca resistência. É quase comum uma confraternização mostrando multidões nas ruas celebrando as FFAA por seu desempenho ao removerem um governo incompetente. Simultaneamente membros da Junta mostram a si próprios como como guardiões da estabilidade e da ordem.

Entretanto, as Juntas com frequência estão divididas. Ambições pessoais e pontos de vista divergentes sobre a política interna e seu futuro corroem o relacionamento entre os oficiais. Curiosamente, desde o final da Guerra Fria golpes militares têm levado a eleições competitivas e nem sempre a ditaduras militares.

À exceção do Senegal, todos os países do Sahel tiveram ditadores de farda nos anos 1960 e 70. Condições socioeconômicas adversas, efeitos devastadores da seca dos anos 1970, centralização do poder nas mãos de elites autocráticas e performance lamentável dos dirigentes civis. No último caso, vale citar que no Mali e em Niger governos civis montaram forças alternativas de segurança (certamente inspiradas no exemplo de Kadhaffi na Libia, que desacreditava e não tinha Forças Armadas, contratando mercenários em seu lugar).

Usualmente as Forças Armadas desempenharam um poderoso papel como atores políticos no Sahel. Antes dos anos 1990 as Forças Armadas dominaram a política em cinco dos seis países. Hoje, a região apresenta um quadro complexo de constelações civil-militares. Na Mauritânia e particularmente no Chade as Forças Armadas permanecem como um ator dominante e não há indicadores de que essa situação vá se modificar em breve. No Níger, Mali e Burkina Faso as FFAA retiraram-se do poder, mas já retornaram no Mali.

O atual Sahel tem pela frente severos desafios, os quais podem uma vez mais enfraquecer a autoridade civil. A guerra contra grupos islâmicos violentos como Boko Haram na Nigeria e numerosas frentes jihadistas no Mali têm o potencial de desestabilizar quaisquer governos. No caso do Niger, p.ex., os dispêndios com as FFAA consomem 10% do orçamento. O fato de que as nações ocidentais consideram Níger, Mauritânia e Chade como importantes aliados na luta contra o extremismo islâmico pode levar a que o Ocidente ignore s deficiências democráticas de seus aliados.

Cerca de seis décadas após a independência o bem-estar econômico do Sahel ainda depende para seu desenvolvimento dos preços de mercado internacionais para insumos e produtos agrícolas. Secas recorrentes e degradações ambientais continuam sendo desafios econômicos que as elites post-1989 não resolveram, ao passo que partidos políticos pobremente institucionalizados e organizações sociais que ainda não são capazes de enfrentar as bem estruturadas corporações militares, dizem bem das dificuldades em modificar o status quo no Sahel francófono.

6. Religiões e guerra santa

O Islã tem sido praticado por mais do que mil anos no Saara, ao lado de muitas práticas “não-islâmicas” ligadas às religiões africanas tradicionais. Em sua longa história o panorama religioso no Sahel tem mudado radicalmente e este continua sendo o caso dos dias atuais, quando se constata que a região é quase que inteiramente muçulmana. Mali, Mauritânia, Níger e Senegal têm populações estimadamente com mais de 90% de fiéis de Alá. Em Burkina Faso e no Chade igualmente há uma maioria muçulmana.

Ainda assim, a verdadeira islamização em massa dos povos da região é recente. Ao tempo da colonização daquelas terras que se tornaram a África Ocidental Francesa, no século dezenove, os muçulmanos não eram a maioria com exceção de áreas muito específicas como Timbuktu e Dienné no atual Mali, Fouta Toro no Senegal, o Sultanato de Agadez no Níger ou o Sultanato de Ouaddai no Chade.

As práticas religiosas populares compreendem uma multiplicidade de formas, incluindo a possessão por espíritos e o uso de “objetos poderosos” ou fetiches por vezes associados a sacrifícios de sangue e a sociedades secretas. Uma das mais inesperadas resultantes do domínio colonial francês foi a islamização de muitas dessas práticas. Na verdade, essas práticas populares foram autorizadas desde que não contestassem a autoridade colonial.

Hoje, em geral predominam os sunitas, assim como em todo o mundo muçulmano. Há que destacar, também, a importância da escola Maliki de jurisprudência, da teologia Ash’ari e do sufismo, assim como da presença do xiismo.

Com a exceção da Mauritânia que foi fundada como uma República Islâmica, os outros países do Sahel são repúblicas seculares. Três correntes intelectuais podem ser visualizadas entre os sunitas atuais: tradicionalista, reformista e islamista, sendo que esta última na qual se mesclaram conhecimentos ocidentais é que aconteceram as conexões com o jihadismo e suas insurgências como se tornou mais comum no século XXI.

Apenas nos derradeiros anos do século XIX missionários católicos romanos chegaram ao interior do Sahel ao lado das forças colonialistas e se seus administradores. O resultado foi um bom número de convertidos em Burkina Faso e no Chade. Várias missões protestantes seguiram-se com as ondas do pentecostalismo e do evangelismo. Atualmente, cristãos no Sahel remanescem essencialmente como católicos romanos. Embora Mali, Níger e Senegal tenham pequenos grupos não-islâmicos, mais de 1/3 dos burkinabé e dos chadianos são cristãos.

Emergência dos movimentos jihadistas

A onda contemporânea de insurgências jihadistas, ou seja, da “guerra santa”, é um fenômeno recente que começou logo nos alvores dos anos 2000, seguindo-se ao 9/11 e da assim denominada “Guerra Global ao Terror”. A intensa cobertura midiática desses eventos gerou debates passionais entre os muçulmanos mundo afora ajudando a disseminar e popularizar o discurso radical. No Sahel autoridades muçulmanas debateram fortemente a legitimidade das posições jihadistas perguntando-se até onde a “jihad” – entendida como guerra santa – é permitida no contexto do mundo moderno, com alguns sendo a favor organizando orações públicas em apoio aos jihadistas no Afeganistão e no Iraque, e outros se posicionando de maneira contrária. Ao mesmo tempo crescia a percepção da hostilidade do Ocidente ao Islã e aos muçulmanos.

Mais importante ainda é o fato de que o discurso jihadista ofereceu uma nova linguagem e uma nova base de referência a alguns ativistas como na Mauritânia onde encontraram aí a justificativa para que se multiplicasse a adesão local de militantes jovens.

Dois grupos jihadistas apareceram no Sahel quase simultaneamente, embora independentes entre si: os autodenominados Talibãs Nigerianos no norte da Nigéria e o Grupo Salafista para a Oração e o Combate no norte do Mali, que evoluíram para se tornarem respectivamente o “Jama’atu Ahl al-Sunna li’l-da’awati w’al-jihad” melhor conhecido como Boko Haram e a AQIM, num movimento que pode ser resumido em cinco pontos:

a) entre 2003 e 2004 é o período de emergência do jihadismo, com os dois grupos originais conduzindo uma série de ataques a postos policiais e a edifícios governamentais, até se verem intensamente enfraquecidos por contraofensivas das forças armadas;

b) de 2004 a 2009 se dá o aprofundamento ideológico dos grupos jihadistas assim como um esforço de recrutamento e de treinamento militar, sob a liderança do jovem e carismático Muhammad Yusuf que, de início, adotou um estilo menos confrontacional com foco na ideia de que a educação ocidental é um pecado, instituições estatais e a democracia são não-islâmicas e trabalhar para o governo nigeriano poderia levar à apostasia, um discurso que foi retransmitido largamente pela região por meio de áudio cassetes, CDs, etc., provocando um crescimento importante nas fileiras do Boko Haram. Militantes foram encorajados a desposar mulheres da comunidade local ao mesmo tempo em que se aprofundavam ligações com grupos de interesse incluindo traficantes e rebeldes, tendo particular sucesso junto aos jovens e a comunidades tuaregues e árabes. Alguns se uniram ao GSPC em campos de treinamento no Mali, agregando-se à AlQaeda em 2007, até adotar o nome de “AQIM - AlQaeda no Magreb Islâmico”.

c) Entre 2008 e 2011 os movimentos jihadistas começaram a enfrentar os governos. Enquanto em meados da década anterior o Boko Haram e AQIM evitavam a confrontação direta, dessa feita adotaram uma atitude cada vez mais desafiadora em relação às autoridades constituídas. O primeiro confronto aconteceu quando jihadistas AQIM começaram a raptar ocidentais no Mali, Mauritânia e Níger por resgate. No mesmo período AQIM procurou descentralizar-se, tentando estabelecer células fora do Mali e da Argélia. O Boko Haram aos poucos deixou de ser uma iniciativa de base religiosa para tornar-se uma violenta milícia insurgente. Uma forte reação da Nigéria provocou baixas significativas no grupo, inclusive com a morte do seu líder Yusuf (substituído por Abubakar Shekau), mas logo o Boko Haram expandiu sua área de atuação envolvendo como alvos a mesquitas, escolas, mercados;

d) o tempo da insurgência assim como de assumir a governança de territórios deu-se de 2012 a 2015. Em sequência à guerra civil da Líbia (2010-11) e à queda de Muammar Khadaffi, uma ampla disponibilidade de armamento e o retorno de combatentes tuaregues mudou a dinâmica do poder no norte do Mali. Diferentes grupos armados, incluindo separatistas e jihadistas, emergiram e se juntaram numa nva guerra contra o estado malinês, rapidamente ocupando Kidal, Gao e Timbuctu. Por nove meses (até janeiro de 2013) governaram essas regiões impondo a mais rígida interpretação das leis da sharia. A tenetativa de expandir-se ainda mais, rumo ao sul, provocou a intervenção armada internacional liderada pela França. Derrotados nas maiores cidades os jihadistas fugiram para a zona rural onde continuaram a operar. O Boko Haram entrou no Chade e no Níger, onde teve sucesso no recrutamento dos Buduma, uma comunidade de pescadores na bacia do Lago Chade;

e) o último ponto, por ora, coincide com as iniciativas contraterroristas, dadas as reações tanto ao nível internacional quanto local. Neste campo, a violência jihadista exacerbou tensões comunais criando um clima de permanente insegurança. No centro e no norte do Mali comunidades criaram milicias de autodefesa e grupos de vigilância para providenciar sua própria segurança face à proliferação de grupos armados e da criminalidade. Já os governos procuraram derrotar militarmente esses grupos, mesmo esbarrando nas debilidades de suas FFAA para fazer frente à guerra de guerrilha implementada pelos seus inimigos. A decretação de estados de emergência envolveu restrições no uso de motocicletas e o banimento do comércio de peixes e pimenta numa tentativa de reduzir a mobilidade e as fontes de recursos do Boko Haram, mas tais medidas afetaram negativamente as economias comunais.

Como um todo, o crescimento dos movimentos jihadistas chamou a atenção mundial para o perigo potencial que o Sahel representa à estabilidade global. No Mali a reunião de três forças internacionais – a MINUSMA acionada pela ONU, a Operação Barkhane dos franceses e a Força Conjunta (G5) dos países do Sahel – alcançou sucesso limitado.

7. Intervenções francesas no Sahel

Visto como um homem cauteloso, o presidente francês François Hollande num curto espaço de tempo lançou uma série de operações bélicas na África: a Operação Serval no Mali em janeiro de 2013 seguida pela Barkhane em agosto de 2014 na região do Sahel e do Saara; a Sangaris na República Centro Africana (dezembro de 2013), sem falar nas iniciativas na Líbia, o apoio à ofensiva regional contra o Boko Haram, a participação francesa nas guerras da Síria, do Iraque e do Iêmen, aportando serviços de inteligência, armamentos sofisticados e aconselhamento estratégico.

Tanto ele quanto seu antecessor Nicolas Sarcozy haviam prestado pouca atenção no continente africano antes de serem eleitos presidentes. Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, a França não costuma substituir muitas pessoas em posições relevantes de direção a cada troca de governo. Uma mudança de Presidente pode afetar apenas o seu circuito pessoal de assessores. Quando a política muda, na base há poucas alterações com as burocracias mantendo-se protegidas. No caso do Sahel, alguns observadores apontariam a sobrevivência de um grupo de diplomatas de alto nível e de analistas militares, denominando-os de “neoconservadores”. Essas pessoas de fato desempenharam um papel importante no endurecimento das posições francesas na discussão nuclear com o Irã e também não hesitaram em promover intervenções militares contra grupos jihadistas na África. Contudo, na verdade profundas mudanças ocorreram no ethos (crenças e características) profissional dos oficiais de alto nível e nos funcionários franceses. Dizendo isto de outra forma, em síntese o Gaullismo estava morto. Vários diplomatas franceses passaram a considerar que seu país de fato pertence à comunidade ocidental e que a política francesa deveria ser definida a partir deste ponto de vista. Um corolário indica que a França procura ser um bom aluno, considerando-se como o melhor aliado dos Estados Unidos. Ao implementar sua própria política exterior, o país o faz de uma forma que atenda aos requerimentos de seu mais poderoso aliado.

Cabe considerar, ainda, que a França herdou um exército colonial cuja cultura sempre foi distinta daquela de outros exércitos ocidentais. A política gaullista de manter as colônias sob forte influência fez com que as FFAA francesas se acostumassem a intervir na África, de modo que muitos diplomatas acham que isto pode ser um “asset” (ativo) que dá status como um poder mundial, algo visto como legítimo pelo Conselho de Segurança da ONU.

Identificando o desafio

A intervenção militar francesa no Mali oficialmente começou em 11 de janeiro de 2013, quando grupos armados islâmicos atacaram Konna, o aeroporto Sévaré e Mopti. A ofensiva começou logo que o diálogo em Uagadugu e em Argel falharam. Apesar do que foi divulgado, não é crível que realmente o ataque das forças islâmicas objetivassem a tomada de Bamako. A localidade de Sévaré, onde o comando operacional do exército do Mali se situava, e Mopti já eram suficientes para satisfazer os atacantes, e uma ofensiva apenas para impedi-las sem visar a reconquista do norte não era algo realista, porque as tropas francesas teriam de parar no lado de fora de Azawad, onde estava o verdadeiro problema.

O cenário já visto na Costa do Marfim – dois lados armados estacionados no campo de batalha sem solução pacífica á vista – poderia repetir-se. François Hollande foi claro em relação ao mandato da intervenção galesa: “os terroristas devem ser destruídos e a integridade nacional recuperada”.

Com isso, no começo de fevereiro a França, lutando em Konna, tinha mais tropas e armamento militar do que em qualquer época anterior no Afeganistão e na Costa do Marfim com a Operação Licorne.

O golpe em Bamako em março de 2012 e a expansão dos grupos armados ocupando 1/3 do território malinês significavam que os problemas de segurança haviam chegado a um nível diferente. De fato, Paris tinha consciência de que a deterioração do Mali poderia desestabilizar países vizinhos onde possuía outros relevantes interesses econômicos.

Em uma análise paralela, concluía-se que o financiamento francês proporcionado ao nacionalismo tuareg e ao seu Movimento Nacional de Liberação do Azawad estava terminado, superando a romântica visão do passado, inclusive do Serviço Secreto, em relação a este antigo povo nômade que agora mantinha íntimas relações com a AQIM (AlQaeda do Magreb Islâmico).

Os militares — especialmente o Comando de Operações Especiais, baseado em Burkina Faso para a Operação Sabre (estabelecida com o propósito de libertar os reféns franceses no norte do Mali), via os grupos islâmicos como um crescente desafio que poderia justificar sua presença mais direta no terreno de luta.

Críticos rapidamente passaram a descrever a situação como uma típica intervenção neocolonialista visando reinstalar a mal afamada “Francafrique”. Embora sendo uma colônia francesa no passado, o Mali não pertencia á esfera de influência da “Francafrique”. Seus presidentes nunca aportaram fundos para financiar as campanhas eleitorais do Partido Socialista Francês, como ouros (países do Sahel) fizeram. Os milhares de franceses residentes no Mali, muitos com dupla nacionalidade, não tinham a relevância econômica das comunidades de países como a Costa do Marfim ou do Gabão, e os principais recursos do país (ouro, algodão) não estavam nas mãos de companhias francesas.

A criação do G5 Sahel em fevereiro de 2014 foi decantado como o nascimento de uma aliança de cinco estados sahelianos confrontados com um desafio jihadista comum. Eles concordaram que se seus países fossem capazes de controlar suas fronteiras, os vários grupos jihadistas não mais conseguiriam encontrar santuários. Assim, o tráfico humano e de drogas não mais teria lugar. Tal argumento com o tempo viu-se reforçado pela emergente crise dos migrantes. Poucos se preocuparam com a viabilidade das ambições do GH5 ou com suas implicações financeiras. Os militares dominaram a discussão e o resultado foi que a crise migratória se tornou o tema de segurança acima de quaisquer outros.

Longa história de intervencionismo francês

Do final da guerra da Argélia pela independência em 1962 até a Operação Serval mais de 630 soldados franceses foram mortos em intervenções militares internacionais. A guerra argelina terminou em derrota e humilhação, com a partida dos “pieds noirs” (pés-negros) franceses. Após 1962 a Guerra Fria de alguma forma regulou a capacidade de intervenção e muitas operações francesas no continente africano justificaram-se por acordos assinados pelos novos estados independentes, muitos contendo artigos secretos que autorizavam a França a agir para proteger os dirigentes intervindo militarmente em caso de conflitos internos ou proteger os interesses franceses.

Desde 1989 as intervenções gaulesas no exterior se tornaram mais frequentes. Um primeiro ponto de inflexão foi a Guerra do Golfo (1990-1991), provocando importantes mudanças no modo como a França via a si mesma como um poder militar fora de moda.

A França é o primeiro país europeu com capacidade de alocar seus militares em teatros do mundo todo. Como suas habilidades neste campo passaram a ser reconhecidas depois da Operação Serval, nenhum debate surgiu no país sobre o fato de que as intervenções militares francesas não foram capazes de resolver qualquer das crises em que se envolveram (p.ex. República Centro Africana, Afeganistão, Kosovo, Líbia, Chade).

O foco da França na região com base no tema da segurança significou que Paris cada vez mais usou sua influência e poder para custear respostas militares no Sahel. Não se pode, por ora, afirmar quais serão as consequências de longo prazo do constante apoio francês ao aparato militar saheliano, mas certamente terá um impacto na crescente negligência para com as instituições civis. Ao que tudo indica, a França será forçada a despender mais e mais recursos na ampla crise de segurança na região, diante de uma instabilidade crescente. No contexto de instituições públicas débeis, a França e seus aliados locais talvez tenham de engajar-se em estratégias que lhes permitirão vencer todas as batalhas, mas perder a guerra.

É frequente ouvir no grande Sahel pessoas reconhecidas por serem razoáveis argumentar que a França e os Estados Unidos criaram os chamados “movimentos jihadistas” como um pretexto para recolonizar a África e apropriando-se de seus preciosos recursos, além de marginalizarem a China e outros poderes emergentes, impedindo os países africanos de se tornarem verdadeiramente independentes.

Esta dinâmica prosseguirá a não ser que a França e o Ocidente se disponham a reorientar seus esforços na região para a população civil, dedicando maior atenção e recursos aos jovens, à economia, à educação e à infraestrutura a fim de proporcionar melhores serviços sociais.

O quadro político na pós-intervenção no Sahel será estabelecido segundo a extensão com que as políticas externas possam mudar de enfoque, do militar para o desenvolvimento, um desafio de imensas proporções.

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