Estado Islâmico ainda vive

junho 15, 2021.

Vitor Pinto.

Escritor. Analista internacional.

Parque infantil abandonado em Alepo, Syria

Foto de M G em Unsplash

Perguntados sobre qual comunidade é a mais perigosa no mundo de hoje os cariocas muito provavelmente falariam em Cidade de Deus, Jacarezinho, Rocinha e Vila Kennedy, as favelas com o maior número de assassinatos no ano que passou. Não o fariam se tivessem ideia do que é Al-Hol, o campo de refugiados de Hassakeh na Síria, junto à fronteira com o Iraque.

Um campo para 68 mil refugiados

40 graus à sombra e o sol brilhando no céu sempre azul sobre um mundo de barracas a perder de vista. É Al-Hol, onde as condições de vida podem ser descritas como medonhas. Chuva, só em dezembro...

Em junho de 2019 o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (DAESH ou apenas EI), originalmente uma dissidência da AlQaeda de Bin Laden, por fim foi derrotado, perdendo suas últimas batalhas para as Forças Democráticas Sírias - FDS. Nem os bombardeios nem os dólares norte-americanos haviam sido capazes de quebrar a resistência e interromper o avanço dos terroristas. Foi preciso uma vigorosa ofensiva por terra, homem a homem. Os únicos capazes de levar adiante essa tarefa, vista como algo impossível diante da crueldade sem limites do então constituído califado sob o comando de Abu Bakr al-Baghdadi (morto na ofensiva derradeira, quando caíram Mosul no Iraque e Racca na Síria), eram os curdos que também lutavam por si próprios, por um país que pudessem considerar como seu.

Al-Hol é a consequência dessa guerra. Numa área de 2,4 km2 este campo de refugiados foi destinado às “famílias” dos terroristas e hoje reúne um total de 68 mil pessoas - 24.600 mulheres, 40.000 crianças e 3.400 homens. Desse total, cerca de 55% provêm do Iraque, 30% da Síria e 15% de 58 outras nações. O campo principal abriga principalmente iraquianas e sírias, enquanto as “estrangeiras” ficam num campo aparte conhecido como o “Anexo”. O controle do campo compete a 400 soldados das forças curdas treinadas em batalha e reforçadas, quando necessário, por elementos das Asayish (Unidade de segurança e contraterrorismo curda). Outros 11 ou 12 mil terroristas (homens) estão detidos em prisões de alta segurança no Iraque e na Síria, igualmente administradas pelos curdos.

As crianças em sua maioria foram geradas durante o período de dominação de várias cidades pelo EI e agora têm entre 4 e 5 anos de idade. No entanto, mesmo no Anexo onde não há homens as mulheres continuam engravidando e gerando novas crianças. Jihadistas que ainda comandam o EI dizem que as mulheres são uma arma estratégica do movimento tanto para agora quanto para o futuro. Assim, estimulam o casamento entre jovens de 14 ou 15 anos a fim de gerar novos militantes ao mesmo tempo em que a doutrinação das crianças atuais constitui tarefa obrigatória das mães e das viúvas que povoam Al-Hol, com razão considerado a última célula ativa do EI na região. Não por outra razão visitantes da ONU e entidades humanitárias, além dos próprios guardas encarregados do policiamento do campo, não raro são recebidos por garotos e garotas que vivem no campo com o dedo médio em riste e fazendo sinais de que cortarão suas cabeças quando saírem dali.

Emir comanda o Matriarcado

Jornalistas como Natalia Sancha do El País e a russa-americana Vera Mironova (veja “Life inside Syria’s al-Hol camp”), pesquisadora ligada à Oxford University, esmiuçam em sua cobertura regular dos conflitos no Oriente Médio, detalhes do dia a dia entre as refugiadas. “À imagem e semelhança do que foi o califado que Abu Bakr al Baghdadi autoproclamou em junho de 2014 em Mosul, em poucos meses de cativeiro as mulheres mais radicais conseguiram estabelecer uma complexa estrutura interna em Al-Hol”, diz a espanhola . E cita uma militante das Forças Democráticas Sírias, corpo militar curdo que policia o campo de refugiados de Hassakeh para contar que “as noivas do EI” instalaram um matriarcado radical chefiado por uma Emir que dorme cada noite em uma tenda diferente para não ser capturada. Não se sabe o seu nome nem quem é, mas ela atua como um Abu Baghdadi de burka e determina padrões de procedimentos ou vestimentas no acampamento, está a par da movimentação da guarda curda e, principalmente, estabelece e ordena os castigos. Mulheres que não usem o véu, desobedeçam as ordens, conversem com homens ou dancem podem ser apedrejadas ou, em geral de madrugada, esfaqueadas. A execução dos castigos, incluindo os assassinatos, constitui tarefa do grupo “duro”, composto principalmente por mulheres russas e chechenas. Identificar alguém por ali é tarefa praticamente impossível diante de pessoas vestidas de negro da cabeça aos pés, restando-lhes apenas os olhos de fora da burka.

As estrangeiras que vivem no Anexo são tidas como as mais violentas e mais ligadas ao EI, que abastece as que lhe são fiéis fornecendo dinheiro para enfrentar as muitas despesas de quem precisa criar os filhos no campo, onde a vida está longe de ser barata. Outra forma de custear os gastos é com o dinheiro que mandam os maridos (naturalmente os que seguem vivos) e a família, utilizando os serviços do Banco informal de Al-Hol que se encarrega das transações financeiras. As viúvas de terroristas recebem pensão paga pelo EI desde que lhe mantenham a fidelidade.

Dentre os vários subgrupos de mulheres que aí vivem, algumas querem permanecer por razões próprias ou por não terem alternativa já que não aceitam ser deportadas, em geral temendo a morte se retornarem a seus lugares de origem, como as uighures que já fugiram das mãos dos chineses, ou as yazidis, cujos filhos não são aceitos pelos seus chefes religiosos e pela própria comunidade, por não serem “puros”, ou seja, por terem pais não-yazidis. Converter-se também não resolve o problema, pois só é considerado um ou uma yazidi quem tiver pai e mãe da mesma religião. A lei iraquiana diz que filho de pai ou pais muçulmanos é muçulmano. Portanto, completa Baba Sheikh Ali Elyas, principal autoridade religiosa, não pode ser considerado um yazidi.

Na semana passada o governo da Holanda repatriou uma mulher, seus dois filhos menores e uma adolescente graças a uma decisão da justiça. Contudo, os 58 países que possuem seus nacionais em Al-Hol não concordam em tê-los de volta, não obstante as organizações humanitárias insistam em que as crianças – sem qualquer contato com a vida fora do campo e recebendo como único ensinamento a catequização nos princípios do EI – precisam ser retiradas e devem ser acompanhadas por suas mães. Muitas delas saíram de seus países por vontade própria (algumas por casamento com militantes do EI) e ainda hoje consideram que as leis e atos da organização jihadista são as melhores para elas, para seus filhos e para o mundo. Não há dúvidas de que, se nada for feito, os pequenos de Al-Hol são uma bomba-relógio com data marcada para explodir.

No que se refere ao isolamento entre o campo e o deserto em volta, o local é seguro pois está todo cercado com arame farpado e tem múltiplas guaritas de proteção e controle. O mesmo não se pode dizer da área interna. Em outubro de 2019 bombardeiros turcos atacaram Al-Hol caçando os curdos, que Erdogan odeia; e centenas de jihadistas do EI aproveitaram para fugir. No último dia 30 de março foi a vez dos curdos revistarem as moradias de alto a baixo, tendo detido 128 jihadistas (homens, pois as mulheres uma vez mais foram poupadas apesar das evidências de seu comprometimento) escondidos nas tendas e acusados por dezenas de assassinatos cometidos nos três meses anteriores.

A prestação de cuidados de saúde murchou com o aparecimento da pandemia pelo coronavírus. Eram 24 unidades de atenção primária e agora são 5 (uma no Anexo, para as estrangeiras), todas com pessoal dos Médicos Sem Fronteiras.

EI quer uma insurgência global

Trump mentiu ou iludiu-se ao anunciar que o Estado Islâmico havia sido derrotado e o califado dizimado, o que o levou a retirar tropas do país de Al Assad. Na verdade, a vitória norte-americana foi parcial, de fato liquidando com o EI na Síria e no Iraque ao tomar todas as cidades que estavam sob seu domínio, contando para isso com a decisiva colaboração dos curdos. Mas os terroristas adaptaram-se à nova realidade. Sem os exércitos que lhes permitiam ocupar grandes territórios, optaram por constituir ou apoiar pequenas células, multiplicando-as mundo afora. Para isso, valeram-lhes as reservas financeiras acumuladas nos tempos do califado, hoje estimadas em algo como 100 milhões de dólares que estão investidos em contas protegidas de bancos em países orientais islâmicos.

Hoje o EI está presente em não menos de 20 países. Dos 10 onde ocorreram ataques em 2020, 7 estão na África Subsaariana e na África Ocidental, onde opera uma célula também conhecida como al-Shabab ou Ansar al-Sunna. Ao ser reconhecido como um componente do EI, o grupo passa a receber armas, orientações, treinamento e dinheiro tanto para planejar e executar ataques cada vez mais eficazes, quanto para remunerar seus componentes. Palma, na província de Cabo Delgado em Moçambique é um dos exemplos mais recentes. Com população majoritariamente muçulmana e rica em gás e rubis, tem visto massacres com as vítimas degoladas, a marca do EI. Para cooptar o apoio das comunidades, os terroristas estão distribuindo gêneros, medicamentos e combustível aos residentes, concentrando os atentados em objetivos do governo ou de outros países. Assim, a multinacional francesa Total viu-se forçada a suspender a exploração e exportação de gás natural em Palma, amargando prejuízos de milhões de dólares.

Para o Estado Islâmico atual, um polvo com cada vez mais tentáculos, campos de refugiados como al-Hol são uma reserva estratégica, pois aí estão militantes experientes e ideologicamente sólidos, necessários para atuarem como pontos de apoio para uma rede global que não cessa de expandir-se.

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