Colômbia e a novidade das paralizações civis

maio 23, 2021.

Vitor Pinto.

Escritor. Analista internacional.

Homem em pé com braço erguido e punho cerrado

Foto de Jakayla Toney em Unsplash

“Ninguém está trabalhando nem em Cali nem na Colômbia. Nós ficamos em silêncio por tempo demasiado”, declarou um manifestante à Agência Reuters, enquanto tratava de proteger-se contra uma nova carga da polícia que já matou 47 civis desde o início dos protestos dezessete dias atrás. Originalmente os jovens movimentaram-se contra um decreto de reforma tributária proposto pelo governo, mas logo as reivindicações populares se multiplicaram e hoje há mais de uma centena de demandas graças ao apoio de trabalhadores urbanos, camponeses, indígenas e estudantes universitários e secundários. De uma marcha sem líderes o movimento evoluiu para a formação de um Comitê de Paralização – “Paro Nacional” como está sendo conhecido o grupo formado por ativistas de diversos setores da sociedade civil que negocia com o governo a suspensão dos bloqueios de rua em troca da promessa de atendimento de algumas de suas ideias.

Duas vitórias parciais já foram obtidas: retirada pelo Presidente da República Iván Duque do projeto de reforma e demissão do Ministro da Fazenda Alberto Carrasquilla, um neoliberal ortodoxo ligado ao grande capital (o Paulo Guedes colombiano), reconhecido como o cérebro da medida.

A pressão sobre o governo de centro-direita de Duque até aqui tem sido crescente, mas dificilmente continuará obtendo a simpatia da população que já dá sinais de não aguentar as paralizações que impedem o funcionamento normal do país. Dentre as múltiplas reivindicações, a ênfase maior agora radica na retirada do Projeto de Lei 10/2020 que prevê a reforma do setor saúde; mudanças na polícia reduzindo sua militarização, retirando-a das ruas, investigando/punindo pelo menos os abusos policiais recentes e desmontando o trágico ESMAD (Escuadrón Móvil Antidisturbios); reforma econômica reduzindo as desigualdades sociais; sistema tarifário justo para os caminhoneiros; apoio ao ingresso de estudantes em universidades privadas; subsídios às pequenas empresas e aos camponeses; implementação real dos Acordos de Paz com a guerrilha das FARC.

Sem dúvida a Colômbia não está acostumada a movimentos civis como este. Afinal, o país está saindo de 60 anos de guerra contra as guerrilhas das FARC e do ELN, durante os quais as Forças Armadas se fortaleceram ao máximo recebendo amplo apoio norte-americano que as fez crescer em pessoal, em armamentos de alta letalidade e em recursos, transformando-se em um braço do Estado que nunca admitiu contestação pois todos sabiam que a violência do inimigo precisava ser respondida com a violência estatal. Na verdade, multidões de civis desarmados, homens e mulheres, marchando nas ruas em defesa de direitos sociais como acontece em qualquer país democrático, constitui uma enorme novidade. Tudo se resolvia por meio de atentados, de raptos de civis para trocá-los por resgate e pelo tráfico de cocaína. Esquadrões da Morte, verdadeiros pelotões de paramilitares se confundiam com as pandilhas de arruaceiros, ladrões pequenos e grandes, numa mistura letal que corroía as organizações do Estado e a própria vida do colombiano comum; um quadro que em boa parte ainda permanece.

Apesar disso, o país é reconhecido como um exemplo de “normalidade” política, pelo funcionamento regular das instituições públicas, pela realização sistemática de eleições e pelos índices econômicos quase invariáveis. Pode-se dizer que a Colômbia e os colombianos amoldaram-se tanto a suas guerrilhas quanto a seu poderosíssimo Exército e à brutal polícia “civil” (ou aos paramilitares), numa convivência acostumada às execuções arbitrárias, à interferência militar norte-americana e à indiscutível necessidade de cada família pagar propinas aos revolucionários, aos bandidos e à soldadesca para garantir proteção.

Tempos da “Violencia” e do “Bogotazo”

Embora a história do país assinale o ano de 1850 como referência devido à criação dos Partidos Liberal e Conservador – PL e PC – que desde então dividiram o comando político e financeiro do país, a verdadeira origem do que hoje acontece está no final da década dos anos quarenta.

Conforme sintetizado no meu livro “Guerra en los Andes”, em 1947 o governo conservador de Mariano Ospina transformou-se em uma ditadura. Mesmo assim houve eleições legislativas, ganhas pelos liberais, o que assegurava o período presidencial seguinte a seu candidato, o jovem Jorge Gaitán de 50 anos. Vários pedidos de renúncia de Ospina deram como resultado apenas o endurecimento do regime e em 9 de abril de 1948 Gaitán foi assassinado ao sair do seu escritório à 1 hora da tarde em pleno centro de Bogotá com três tiros a queima-roupa, fazendo explodir um dos mais terríveis e complexos conflitos da história colombiana, “La Violencia”, que ao longo de dezoito anos consumiu mais de 200 mil vidas. Naquele dia o assassino, Juan Roa Sierra, foi perseguido e de imediato linchado por uma furiosa multidão que, não satisfeita, aumentou lentamente em número e promoveu o famoso Bogotazo destruindo o centro e várias áreas da capital em uma noite de loucura que terminou com a morte de ao menos 2 mil pessoas. Nesse e nos dias seguintes reinou a anarquia e execuções sumárias aconteciam em cada esquina. Os gaitanistas acusaram o governo de Ospina e a seu partido – o PC – de ser o mandante e incitaram pela rádio ao povo que se lançou às ruas incendiando e saqueando tudo o que encontrava pela frente.

Nunca foi de fato esclarecida a morte de Gaitán. Com base nos documentos secretos arquivados em Washington, o diretor da CIA, Roscoe Hillenkpeter, declarou que Sierra matou Gaitán por uma simples vingança familiar, indignado porque o político teria exonerado a seu tio. A embaixada americana, por sua vez, difundiu o boato de que se tratava de uma obra de comunistas interessados em criar o caos.

A falsa paz com as Farc, saúde e pandemia

Retornando aos tempos atuais, já lá se vão cinco anos desde que a paz foi assinada colocando um fim à mais antiga guerra de guerrilhas do mundo ocidental. As FARC – Forças Armadas de Colômbia – constituíram um partido político ganhando representação no Parlamento, mas isso não significou o encerramento real do conflito, visto que nem o governo cumpriu muitos dos itens do acordo e boa parte dos guerrilheiros simplesmente se incorporou a grupos de criminosos comuns e a máfias de traficantes de drogas.

Os três principais negociadores da paz pela guerrilha tiveram destinos diferentes. Timochenko tornou-se presidente do partido “Forças Alternativas Revolucionárias do Comum” (a sigla é a mesma das Farc) que, pelo Acordo, recebeu 5 cadeiras no Senado e outras 5 na Câmara por dois períodos, ou seja, por 8 anos, mas nunca teve destaque e em janeiro último mudou de nome, tornando-se o “Comunes”. Ivan Marques e Jesus Santrich desde agosto de 2019 abandonaram a via legal dizendo que retomariam as armas. Santrich, acaba de ser assassinado aos 53 anos de idade no lado venezuelano da fronteira, no estado de Apure, possivelmente numa disputa ligada ao contrabando de cocaína, por elementos de bandos rivais ou por um destacamento de elite da Fuerza Armada Nacional Bolivariana, as FANB de Nicolás Maduro. O conflito de Apure é muito obscuro, pois envolve militantes do ELN (Exército de Liberação Nacional colombiano que não participou do Acordo de Paz) sob cujo domínio está, há anos, a região. Marques, que atua no mesmo grupo, segue vivo. Enquanto isso a coca continua sendo produzida e transformada em cocaína na Colômbia (70% da oferta global), Peru (20%) e Bolívia (10%) para abastecer consumidores nos cinco continentes.

Somando-se aos protestos populares que acontecem principalmente em Cali, Medellín e Bogotá, um conjunto de 140 organizações sociais, de representação profissional ou de funcionários públicos e trabalhadores, estruturados em torno do Pacto Nacional pela Saúde e pela Vida, denunciaram o projeto 10/2020 dizendo que seu objetivo principal é a privatização do sistema e não uma reforma estrutural do setor saúde. Na prática o governo liberal de Duque privilegia as empresas prestadoras de serviços privados, como denunciou o presidente da Federación Médica de Colombia, Dr. Sergio Isaza.

Todos dizem que o momento para tanta confusão não poderia ser pior devido à 2ª. onda da Covid-19 que agora assola tanto aos pobres quanto aos ricos com cerca de 20 mil casos novos e 500 óbitos a cada 24 horas, uma incidência que na média se aproxima à do Brasil considerando a diferença populacional entre as duas nações que é de quatro vezes.

Bloqueios prosseguem e futuro é incerto

Desabituado a protestos civis, o governo colombiano age como se ainda estivesse enfrentando os movimentos guerrilheiros. Conta a seu favor, além de um exército e uma polícia sofisticados e armados até os dentes, com o mau humor dos colombianos que são a favor dos que protestam, mas não aguentam mais os bloqueios das ruas e das vias de acesso às principais cidades que já ocasionam escassez de víveres essenciais.

Nenhuma conclusão ou acordo surgiu após duas largas reuniões entre representantes de alto nível do governo, liderados pela Vice-presidente da República Marta Lucia Ramirez, e o improvisado 1º escalão dos manifestantes que, sem um comando definido e decisões tomadas coletivamente, tem em Francisco Maltés da Central Unitaria de los Trabajadores (a CUT colombiana) um de seus porta-vozes. A mediação é exercida por um representante da ONU e outro da Conferência Nacional dos Bispos. Praticamente nenhuma das 19 reivindicações do movimento popular foi aceita pelo governo que insistiu unicamente em exigir a suspensão dos bloqueios e o término dos protestos. Para os participantes, a única vitória foi de que os governistas não se levantaram para abandonar a mesa dos debates. O presidente Iván Duque disse que continuará conversando, mas, ao mesmo tempo, ordenou à Força Pública e principalmente ao odiado ESMAD que agissem para a retirada imediata dos bloqueios. Na prática, o governo reage como sempre reagiu, usando a força. Não se sabe se a limpeza ordenada pelo presidente atingirá a Praça Bolívar, uma das mais conhecidas de Bogotá, onde a oposição tem se concentrado.

Analistas mais acostumados às lutas latino-americanas apontam três cenários de curto e médio prazos: a) tudo fica igual e a crise é adiada, esgotando-se por cansaço dos dois lados; b) à falta de consensos a violência se aprofunda, a polícia endurece, os comerciantes se armam e contratam gangues de proteção, os saques se multiplicam; c) as negociações chegam a resultados mínimos e satisfatórios, o governo pede perdão por alguns exageros e a tensão diminui. Esta terceira hipótese, a mais favorável para todos tem, contudo, chances mínimas de acontecer.

Com tantos fatores novos no horizonte, a luta política promete fortes mudanças para a eleição presidencial de maio de 2022, daqui a um ano. A esquerda, na verdade, nunca teve peso significativo na política colombiana, sofrendo de uma debilidade histórica que em grande parte se deve à ação das guerrilhas. Contudo, os tempos mudaram. Por um lado, os velhos Partidos Liberal e Conservador perderam relevância no século XXI, embora seus ideais estejam presentes em outras agremiações políticas num país que sempre optou pela direita. Nas últimas eleições, de 2018, triunfou Iván Duque – cria do ultradireitista Manoel Uribe, o presidente anterior – com apoio do ainda existente Partido Liberal que quase não teve votos. Num sinal dos novos tempos, o candidato derrotado e que agora surge como favorito para 22 é Gustavo Petro, um ex-guerrilheiro (pertenceu ao M-19, agrupamento desmobilizado em novembro de 1989).

Segundo as atuais pesquisas de intenções de voto, outros candidatos potenciais como o centrista ex-prefeito de Medellín Sergio Fajardo e a vice do governo Duque, Marta Ramirez, mostram ter mínimo apoio no eleitorado.

Petro é economista, senador e ex-prefeito de Bogotá. O voto não é obrigatório e no último pleito o comparecimento restringiu-se a 54% dos colombianos, que proporcionaram 10,4 milhões de votos ao vencedor e 8 milhões (42%) ao perdedor, mostrando uma surpreendente força de Petro concorrendo pelo movimento “Colômbia Humana” com sua proposta de um “capitalismo democrático”. Ele reitera que não advoga um programa socialista por considerar que “isto não funcionou” (em outros países). Para derrotá-lo, Duque precisou apelar para o sentimento tão comum de medo da esquerda, expresso em cartazes espalhados pela país clamando: “Vote para que Colombia no sea otra Venezuela”. Embora atualmente possa ser considerado como um político de centro-esquerda, como presidente de seu partido Petro lidera um “Pacto Histórico” baseado em propostas de caráter social que engloba forças como a União Patriótica, o Partido Comunista, o Partido do Trabalho e os Comunes. De qualquer maneira, sua possível vitória significará, sem a menor dúvida, uma revolução pacífica na política nacional. A ver como se comportarão aqueles que desde sempre têm comandado uma nação que na América Latina só é superada, em termos populacionais, por Brasil, México e Argentina.

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