Índia: um nirvana para o coronoavírus

maio 03, 2021.

Vitor Pinto.

Escritor. Analista internacional.

Hyderabad, Telangana, India

Foto de Tejj em Unsplash

Até meados de fevereiro deste ano a Índia com seus 1.391.160.677 habitantes, o 2º país de maior população só superado pela China, era um exemplo pelos baixos índices de contaminação e de óbitos devidos à Covid-19. A partir daí, com o surgimento de uma 2ª. onda, uma avassaladora “dupla-variante” (por apresentar duas mutações na proteína spike que permite o acesso do vírus às células receptoras) se impôs e, incontida em sua voracidade, neste primeiro dia de maio de 2021 já acumula 19 milhões de casos e 208,3 mil vítimas fatais em todo o país - uma surpreendente façanha ao superar com folga o pior de todos até então (depois dos Estados Unidos): o desorganizado e passivo Brasil que tem menos de 15 milhões de casos, mas 402 mil mortos.

Para compreendermos melhor o que acontece nesse imenso país asiático, é preciso em primeiro lugar saber de qual Índia estamos falando. Da Índia neoliberal e da supremacia hindu de Narendra Modi? Da maior produtora global de vacinas? Do país que abastece o mundo com sua produção de insumos farmacêuticos essenciais? Daquele que, em Bangalore, granjeou a fama de mais apurada tecnologia de ponta em áreas essenciais para o funcionamento do mundo moderno e onde é produzido algo como 2 mil filmes por ano (frente a cerca de 700 nos Estados Unidos e Canadá)? Ou da Índia das castas que aprisionam os indianos com suas regras de imobilidade social? Ou do país que permite a precária sobrevivência de 20 milhões de dalits, os sem-casta ou harijans (crianças de Deus)?

Porque o vírus assumiu o comando?

Os especialistas, em meio a intensos debates, listam oito explicações para a súbita explosão da pandemia:

a) O maior poder letal da “dupla variante indiana” – B.1.617 – assim denominada por conter duas mutações que parece não ser bloqueada pela vacinação e tem maior transmissibilidade que a B.1.1.7 originada no Reino Unido e que se tornou dominante no estado do Punjab;

b) relaxamento das medidas preventivas com a volta das aglomerações e reabertura geral das atividades comerciais e sociais;

c) lockdown nacional apressado, exagerado e mal executado entre 24 de março e 31 de maio de 2020, quando a incidência do vírus ainda era baixa. 85% dos trabalhadores indianos, que são autônomos e precisam ganhar a vida batalhando por serviço no dia a dia, sem qualquer aviso perderam sua renda e superlotaram os trens na tentativa de voltar para as cidades de origem. A falta de políticas públicas compensatórias jogou-os na rua da amargura e os expôs ao contágio;

d) péssimo exemplo do presidente Narendra Modi que promoveu enormes ajuntamentos populares ao fazer campanha presencial pró candidatos do seu Partido do Povo Indiano (Baratiya Janatha Party) nas eleições parciais realizadas em Bengala Ocidental e em outras quatro regiões. O presidente minimizou a pandemia ao dedicar-se às disputas eleitorais e a suas prioridades ideológicas. Modi quer impor uma supremacia hindu (como a supremacia branca de Trump) que persegue grande parte da população composta por muçulmanos, quase levando a uma nova guerra com o Paquistão na Caxemira;

e) deficiências no sistema indiano de coleta e apuração de dados, resultando em significativa subestimação dos números reais da pandemia. Com o colapso dos serviços de atendimento e internação, os hospitais passaram a não atender os casos de maior gravidade, mandando os pacientes de volta a suas casas, onde os óbitos quase nunca são registrados;

f) mudança de comportamento do vírus que inicialmente atacou os mais pobres, mas agora está generalizado e faz vítimas em todas as classes sociais. Contudo, o sistema de castas continua vigente (vide o item seguinte);

g) manutenção dos habituais e grandemente populares festivais religiosos. O maior festival religioso do mundo, “Kumbh mela” na cidade de Haridwar ao norte do país, começou em abril para durar várias semanas, atraindo cerca de 5 milhões de peregrinos ao dia para banhar-se no rio Ganges onde, além de purgar seus pecados, está “amritar”, o néctar da imortalidade que assegura a eterna continuidade do ciclo de vida segundo o hinduísmo. O festival deste ano, que já fora transferido pelo governo de suas datas normais em janeiro devido à pandemia, é um veículo certo para o surgimento de milhares de novos contaminados pelo coronavírus;

h) ineficiência do sistema de saúde que não é universal (não há um SUS nem uma base de serviços públicos razoável), agravada pela falta de oxigênio. Em tempos de normalidade só 15% do oxigênio produzido na Índia é consumido no país, mas agora além de ser de 90% precisa ser transportado em caminhões que circulam somente à luz do dia e a não mais de 25 km/hora pelos riscos de sua carga.

Terra de desigualdades e de piras crematórias

O regime de separação dos indianos em castas continua vivo e na prática rege a existência de cada um. Todas são originadas de Brahma, o criador do universo: da cabeça surgem os brâmanes (sacerdotes, professores), dos braços os xátrias (guerreiros, elites governantes), dos músculos os vaixás (comerciantes) e dos pés os sudras (trabalhadores). Do pó e da terra sob os pés da divindade vêm os dalits ou sem-casta. Uma vez que a discriminação por casta foi constitucionalmente proibida, abolindo a prática da intocabilidade, o governo implantou um sistema de estímulos por cotas aos mais pobres. Para isso dividiu a população em quatro categorias: OBC (Outras Classes Atrasadas), onde estão as “antigas” castas, exceto os brâmanes e que reúne 40% dos indianos; SC (Classes Determinadas) destinada aos dalits, com 20% do total; ST (Tribos Determinadas) com 9%; Outros, principalmente muçulmanos, sikhs, budistas, cristãos, ateus com 30%.

Há uma disputa permanente para a inclusão de novas categorias na relação oficial (e legal) como OBC, o que assegura o acesso ao regime de cotas por empregos e vagas em escolas. Uma vez que a formação de sub-castas é comum numa redivisão permanente da sociedade, estima-se que na Índia existem pelo menos 3 mil castas e 25 mil sub-castas, formal ou informalmente identificadas com precisão em função dos ritos e costumes de cada uma. Muitos vivem nas ruas e estão quase sempre entre os de mais baixos rendimentos, o que os tem transformado em alvos fáceis para a transmissão e progressão do coronavírus.

A 2ª. Onda da pandemia, no entanto, não se limitou aos mais pobres. Um exemplo é a rica Bangalore, no estado de Karnataka, onde há em torno de 300 casos ativos de Covid-19 a cada quilômetro quadrado. O governador do estado, Vajubmai Vala, tendo ao seu lado o Secretário de Saúde K. Suddhakar, recomendou que “é prudente dispor rápida e respeitosamente dos corpos (de falecidos por Covid) de forma descentralizada para evitar aglomerações em crematórios e cemitérios”. O termo “descentralização” é usado na Índia para significar ações realizadas em casa ou simplesmente fora de espaços governamentais, aplicando-se, no caso, à cremação de corpos num cenário em que os crematórios estão superlotados. Governos locais em Nova Delhi, a capital, e em várias outras cidades, autorizaram esta prática em espaços públicos e nos jardins e pátios das casas, com o que as piras crematórias invadiram praças e estacionamentos de carros, umas ao lado das outras já quase sem espaço para as famílias (que devem responsabilizar-se pelo fogo) e que são responsáveis pelo ar tóxico proveniente das nuvens de fumaça cobrindo o céu de cidades indianas.

Cremar os parentes é para a sociedade algo normal e está previsto nos cânones do hinduísmo, religião na qual o corpo deve ser totalmente desintegrado até o ponto em que libera a alma para que vá ao nirvana onde seguirá seu destino de incorporação a outros, pessoas ou animais, de acordo com os méritos ou deméritos acumulados por parte de cada um ao longo de sua vida terrena.

O ritual pode ser acompanhado, p.ex., na cidade sagrada de Varanasi. Nas escadarias às margens do rio Ganges a família traz o falecido coberto com fina roupa branca e muitos ramos de flores. Enquanto cantam o hino “Ram Naam Satya Hain” evocando o nome do Deus Ram, da verdade, conduzem o corpo Ganges adentro e o banham num ritual de purificação. Alguns permanecem nos degraus preparando a pira mortuária. Para isso a família deve responsabilizar-se pela madeira, entre 350 e 500 kg de carvalho que é tida como a árvore mais nobre para essa finalidade, ou por outras como eucalipto, cerejeira, mogno, pinheiro, nogueira. Os mais ricos usam sândalo ou pelo menos incluem o sândalo para compensar qualquer mau odor vindo das carnes sendo queimadas. Durante todo o processo que dura entre 3 e 4 horas, os familiares permanecem ao lado da pira, devolvendo à fogueira qualquer parte do corpo que acaso ameace cair para fora. Ao final reúnem os restos, colocam as cinzas num pote e voltam ao rio lançando tudo às águas no rito de despedida final. Hoje, nas cremações coletivas em plena rua esse ritual tem de ser simplificado e apressado, requerendo menos madeira, com o que os gastos também diminuem (1 kg de boa madeira, que no caso de Varanasi costuma ser proveniente do Himalaia, pode custar algo entre 10 e 14.000 rúpias, ou de R$ 0,70 a R$ 193,00). Cálculos do Departamento de Florestas indiano indicam que 60 milhões de árvores são queimadas a cada ano com essa finalidade, mas atualmente as empresas governamentais e privadas do ramo estão pedindo às famílias que se esforcem para buscar madeira de novas matas face ao tremendo aumento da demanda por piras. Mesmo assim, há centros crematórios modernos que utilizam eletricidade e gás, naturalmente com custos maiores e sujeitos a demoras no atendimento dos pedidos.

Perspectivas

A Índia foi o 4º país a alcançar a triste marca de 200 mil óbitos pela Covid, juntando-se aos Estados Unidos, Brasil e México, mas agora é onde as taxas mais se aceleram, não obstante tenha uma capacidade instalada de produção de vacinas (não só para combater a Covid-19) de 8,2 bilhões de doses por ano em seus sete mega laboratórios: Serum, Bhorat Biotech, Panacea, Sanofi, Biological, Hester Bios, Zydus Cadila. Mesmo assim, está aguardando uma partida da russa Sputnik V e recebe apoios emergenciais dos Estados Unidos, Reino Unido e França, entre outros.

Modi, que ideologicamente acompanha posições de seus colegas Donald Trump (até ser derrotado por Jo Byden), Jair Bolsonaro no Brasil, Benjamin Netanyahu em Israel, Viktor Orbán na Hungria, Rodrigo Duterte nas Filipinas, Mateusz Morawiscki na Polônia, Recep Tayip Erdogan na Turquia, continua com apoio popular para seu mandato que se estende até 2024. No entanto, sua condução política e prática diante da pandemia o tem colocado cada vez mais sob ataques da oposição, dos grupos populacionais mais atacados por ele como os muçulmanos e não-hindus ou mesmo de instituições aliadas. Este é o caso do Informe de Pesquisa do Banco Estatal da Índia (SBI), assinado pelo chefe da equipe econômica Kanti Ghosh, afirmando que a 2ª. Onda tem sido bem agressiva que a 1ª., devendo perdurar ao menos ao longo de 100 dias antes de atingir seu pico. Acha, no entanto, que a vacinação seria mais efetiva que um lockdown nacional, medida agora também afastada por Modi. Rahul Gandhi (neto de Indira Gandhi) do Partido do Congresso ironicamente “agradeceu” a Modi, por quem foi derrotado nas últimas eleições: “Filas por oxigênio, filas por camas hospitalares e em frente aos crematórios – obrigado presidente Modi”.

Cientistas têm defendido medidas como o isolamento de pacientes atingidos por novas cepas do coronavírus e a realização de testes PCR e sorológicos visando analisar o genoma dos contaminados com o objetivo de identificar quais variantes circulam nas comunidades. Enquanto isso, na capital Nova Delhi um indiano morre a cada 4 minutos.

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