Equador ensaia volta ao socialismo bolivariano

março 21, 2021.

Vitor Pinto.

Escritor. Analista internacional.

Quito, Equador

Foto de Jaime Dantas em Unsplash

Justo no meio do mundo, estendido ao longo do Paralelo Zero (Latitude 0º0’0”), o Equador é um dos mais belos países das Américas, com seus incomparáveis cenários desde Galápagos no Pacífico até os 5.900 metros do Cotopaxi que, eternamente nevados, em dias de outono ou sempre que as nuvens se afastam pode ser admirado desde Quito, a 50 quilômetros de distância. O que a natureza, pródiga, oferece de graça a cada dia, os políticos equatorianos teimam em sonegar, fazendo a população, literalmente, passar o diabo.

Dentro de poucos dias, no domingo 11 de abril, o país voltará às urnas para um segundo turno possivelmente para devolver o poder ao notório Rafael Correa através de um seu preposto, o jovem economista Andres Arauz, 36 anos. No lado oposto concorre, pela terceira vez seguida e aos 65 ano, o ex-banqueiro Guillermo Lasso.

Morte do sucre e dolarização

Politicamente, o Equador tem sido uma poderosa máquina de criação de problemas e poucos momentos na história recente foram mais significativos do que aquele marcado pela decisão do então ainda presidente, o conservador Jamil Mahuad que, envolto em um redemoinho de sucessivas crises, numa atitude de desespero em 9 de janeiro de 2000, um domingo, decretou a dolarização total da moeda, fixando uma equivalência de 25 mil sucres por dólar (valia 6.500 em fins de 98 e 10 mil em fevereiro de 99). Com o apoio dos chamados “mandos médios” do Exército (nucleados na Arma de Cavalaria), a poderosa Conaie – Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador – tomou a capital Quito e, no auge, invadiu o Palácio do Congresso em 21 de janeiro, naquela que ficou conhecida como a “Noite dos Coroneis – Revolução Arco-Iris ou Rebelião Indígena”. Nas palavras de seu líder maior, Antonio Vargas: “Senhores generais, não queremos o poder. Assumam o que lhes entregamos e impeçam que os políticos e banqueiros corruptos nos tirem da boca o pão que produzimos todos os dias. Têm um prazo de seis meses, mas, se então não houver mudanças na condução da economia, nos levantaremos y ahí ya no vendremos com palos”.

O que sucedeu a seguir, com a posse do neoliberal Gustavo Noboa, mostrou que o movimento indígena foi manipulado pelos generais e coronéis numa época descrita como “calamitosa, com 80% da população na pobreza e fugindo do país, inflação em alta, incremento vertiginoso da corrupção e da delinquência, recente baixa dos preços internacionais do petróleo e mais os efeitos devastadores da corrente El Niño” (vide descrição detalhada no livro Guerra en los Andes – 2ª. Edición, Editora Abya Ayala, Quito, 2008, de autoria de Vitor Gomes Pinto). Até hoje a dolarização, que no começo teve lances espetaculares, nunca foi revertida. Eliminaram-se todas as reservas da moeda nacional, o sucre: na Casa da Moeda em Salgonqui, a meia hora da capital, instalou-se uma máquina trituradora com capacidade de “picar” até 700 mil cédulas de sucres por hora. Caminhões com o falecido dinheiro equatoriano vinham de todas as partes do país depositando sua carga, antes preciosa e agora inútil, para alimentar a voraz picadora. Logo, o Equador transformou-se no paraíso dos falsificadores de dólar que se aproveitavam de toda uma população que ainda não sabia reconhecer quais notas eram verdadeiras. Aos poucos, maquininhas de identificação de dólares tornaram-se acessíveis a todos e os falsificadores retornaram à Colômbia, de onde tinham vindo.

As promessas de melhora das condições de vida e redução das desigualdades jamais se concretizaram, mesmo com o controle da inflação. Para demonstrar que a dolarização era de fato irreversível, em 2005 o governo de turno anunciou que as últimas 2150 toneladas de moedas foram vendidas pelo Banco Central para a empresa holandesa Jemetalstains Preffesibv para extração do cobre, níquel, zinco e aço por um processo de fundição. Depois de viver durante 120 anos como moeda circulante nacional, o sucre morria e o Banco Central se convertia num simples administrador de moeda estrangeira. Hoje, o Equador tem um PIB Per Capita nominal de US$ 5097, o 7º na América Latina e inferior ao brasileiro que é de US$ 11611. Mas a inflação, que está em 1%, é das mais baixas na região.

O Correaço

Exaustos com os políticos tradicionais, os equatorianos caíram numa armadilha em 2007 ao elegerem o jovem economista Rafael Correa que concorrera sem pertencer a partido político algum, mas que mal chegado ao poder passou a proceder como se julgasse que nascera para aquilo e que a presidência do Equador era seu projeto de vida. Aliou-se ao venezuelano Hugo Chávez para implantar o “socialismo do século XXI”, nomeou uma mulher, Guadalupe Larriva como ministra da Defesa (morreu nove dias depois da posse, por causas não esclarecidas, em um choque de dois helicópteros militares ao sair do aeroporto de Manta), mudou a Constituição nomeando novos juízes e uma Assembleia Constituinte que fechou o Congresso, o que lhe possibilitou governar por dez anos.

Correa tornou-se um símbolo do neopresidencialismo, definido por Karl Loewenstein (Univ. de Chicago, 1957: Political power and the Governmental process) como sendo “o regime no qual o Executivo não prescinde do Legislativo e do Judiciário desde que lhe sejam submissos”. O Congresso chegou a aprovar uma reforma constitucional contemplando a hipótese de exercício da presidência por tempo indefinido, mas esta cláusula só valeria depois de abril de 2017, ou seja, após as novas eleições presidenciais que se realizariam em fevereiro. Receoso de ser derrotado a exemplo do que ocorrera com Evo Morales na Bolívia, Correa cometeu uma série de erros de cálculo, terminando por não se candidatar no pleito de 2017 apesar dos níveis de aprovação popular a seu governo e do movimento de seus partidários por um referendo que modificasse a lei possibilitando-lhe a candidatura. “Saio por um tempo” disse, imaginando voltar nos braços do povo na eleição seguinte. Afinal, mesmo sendo do mesmo partido, concorreu e venceu Lenín Moreno que já fora seu vice, mas que logo se tornou oposição ao “correismo” e anulou a possibilidade de eleição indefinida. Rafael, então, mudou-se para a Bélgica, terra natal de sua esposa.

Covid-19 em Guayaquil, economia e as eleições de 2021

Durante a última administração de Correa, o país obteve um empréstimo de US$ 19 bilhões de bancos chineses destinado ao financiamento de hidrelétricas, estradas, pontes e Centros de Saúde, mas os recursos foram concedidos a altos juros e em condições pouco claras, num período em que o governo sofria acusações de corrupção crescente. Com a posterior guinada de Lenín para a direita, o FMI aprestou-se a socorrê-lo, renegociando um empréstimo de US$ 17,4 bilhões e por fim concedendo ao Equador um novo crédito de US$ 6,5 bilhões, sujeito a um programa de governo de enfoque neoliberal. Quando Lenín Moreno retirou o subsídio à gasolina e seu preço explodiu nas bombas, seus níveis de aprovação desabaram atingindo percentuais mínimos, inviabilizando uma nova candidatura ao somar-se aos perenes problemas físicos do presidente que exercera seu mandato desde uma cadeira de rodas devido a lesões de coluna adquiridas após ser baleado em um assalto anos antes.

No verão de 2020 uma vez mais milhares de equatorianos residentes à beira-mar em Guayaquil, a segunda cidade mais populosa do país, repetiram aquilo a que estavam habituados: a visita aos parentes que vivem em Madri ou em outras cidades espanholas. Ao retornarem, alegres pelas férias europeias, trouxeram consigo o vírus da Covid-19 que se alastrou de maneira arrasadora primeiro entre seus contatos e logo pela cidade inteira, produzindo o caos dos sistemas de saúde e funerário. Pessoas passaram a morrer em casa por falta de leitos e os cadáveres, ao não serem recolhidos, por vezes foram abandonados ao léu nas ruas de Guayaquil que se tornou o mais trágico símbolo da doença, “galardão” hoje transferido para as cidades brasileiras.

A queda do PIB equatoriano no ano 2020 acompanhou o desastre visto na América Latina que, com 8,4% da população mundial foi responsável por 27,8% dos óbitos por Covid-19 segundo o Cesla (Centro de Estudios Latinoamericanos da Universidad Autónoma de Madrid). O Equador, com 17,4 milhões de habitantes, nesse ano teve 303 mil infectados e 16,3 mil mortos, acumulando 1 milhão de desempregados. Nesse quadro de fundo ocorreram as eleições de fevereiro de 2021 em 1º turno, com 16 candidatos. Para um total de 13,1 milhões de eleitores, 10% anularam seus votos, enquanto os restantes preferiram votar no economista Guillermo Arauz, cria direta de Rafael Correa (Alianza País) concedendo-lhe 3 milhões de votos (32,7%). No 2º posto, o ex-banqueiro e católico convicto da Opus-Dei Guillermo Lasso, do movimento Creando Oportunidades (CREO) terminou com 1.830 mil sufrágios (19,74%); em 3º e, portanto, fora do 2º turno de 11 de abril, o advogado e ativista indígena Yaku Perez do partido Pachakutik com 1.797,5 votos (19,39%). Chegou perto o 4º colocado, Xavier Hervas da Izquierda Democrática, um empresário agrícola, com 15,6% das preferências.

Um pedido de recontagem dos votos pedido por Perez não foi acatado pelo organismo eleitoral equatoriano. Por suas declarações iniciais, ainda no calor dos resultados, tanto o 3º colocado quanto a Conaie declararam que liberam seus partidários, mas não apoiarão a ninguém, aconselhando o voto em branco. Uma análise de um professor da Universidade San Francisco de Quito diz que 45% do eleitorado não se identifica nem com o correismo nem com o anti-correismo, o que levaria Arauz e Lasso a darem passos na direção do centro. Rafael Correa até se candidatou como vice de Arauz (que de toda forma deve governar sob suas ordens), mas o órgão eleitoral lhe negou as pretensões por residir na Bélgica e não ter apresentado a candidatura pessoalmente conforme o exigido por lei, sem nem precisar referir a condenação de Correa a oito anos de prisão por corrupção ativa e passiva.

Um tema relevante foi colocado nos comícios por Yaku Perez que se opõe a atividades mineradoras impróprias e mantém uma disputa feroz nos arredores da cidade de Río Blanco que até aqui inviabilizou a exploração de uma grande mina de ouro e prata pela companhia mineradora chinesa Junefield’s Ecuagold Mining, que já provocou até um embate entre duas comunidades indígenas, pró e contra o projeto e um incêndio criminoso até hoje sem identificação dos culpados, mas que os chineses responsabilizam a Conaie. No fundo, a questão mineira, em torno de um ativo que para o Equador é quase tão importante quanto suas vastas reservas perolíferas, insere-se na disputa EUA x China pelo precioso solo equatoriano.

Lasso, com a fama de ter-se feito por si próprio, provém de uma família com 11 filhos e ele mesmo formou um casal que originou 5 descendentes. Já perdeu duas eleições, uma para Correa e outra para Lenin Moreno, em condições de desequilíbrio eleitoral similares às que agora enfrenta, mas sua aliança com o tradicional Partido Social Cristão dificulta a ligação com as comunidades indígenas e com parte da elite intelectual nacional. Contudo, um 2º turno é sempre uma nova eleição e a possibilidade de reverter a desvantagem inicial não pode ser descartada diante da forte rejeição de parte significativa dos eleitores à figura absolutista do capo Correa.

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