Saara Ocidental: penúltima trapalhada global de Trump

janeiro 20, 2021.

Vitor Pinto.

Escritor. Analista internacional.

Deserto do Saara

Foto de Curly beard em Unsplash

A caixa de maldades e de provocações de Donald Trump parece inesgotável e no lusco-fusco derradeiro de seu mandato dedicou-se a perdoar mais de uma centena de republicanos que, presos e condenados, não dispunham de outro recurso legal que não fosse uma benesse do presidente. Tentou até (sem sucesso) perdoar a si próprio, antecipando-se aos julgamentos que certamente o culparão pelo ataque ao Capitólio. Enquanto isso, esforçou-se para agradar a dirigentes amigos na arena internacional. Escolhido a dedo, o Marrocos foi agraciado com o reconhecimento de Trump de sua suposta soberania total sobre o Saara Ocidental, desprezando o fato de que 1/5 do território é dominado pela Frente Polisário com apoio da Argélia. Para fazer jus a esse surpreendente prêmio, o rei marroquino Mohammad VI reatou relações com Israel, tornando-se o quarto país árabe a fazê-lo, agora na companhia de Sudão, Bahrein e Emirados Árabes Unidos.

O Saara Ocidental com 266 mil km2 de pura areia supera em tamanho a Grã Bretanha, São Paulo ou Rio de Janeiro (o deserto do Saara inteiro é maior que o Brasil). Entre 1975 e 1991 a guerra da Frente Polisário contra Marrocos e Mauritânia dominou diariamente o noticiário global. Em 4 de setembro afinal o cessar-fogo, negociado com a ativa presença da ONU em função do esgotamento das energias dos combatentes, proporcionou uma nítida vantagem para o lado marroquino que consolidou seu domínio sobre os 80% do território onde se concentram os únicos tesouros da região: os depósitos de fosfato e as áreas de pesca. Os 20% restantes são, na verdade, inabitáveis em função do mar de areia, da ausência de chuvas e dos perigos sempre latentes representados pela enorme quantidade de artefatos explosivos enterrados por toda parte, constituindo a área liberada pela Polisário com a denominação de República Democrática Árabe do Sahrawi, reconhecida pela ONU, pela União Africana e por mais de 80 países.

O Acordo de Paz estabeleceu o direito do povo sahrawi à autodeterminação e à soberania. A ONU constituiu a MINURSO, sigla para o curioso título de “Missão para o Referendo no Saara Ocidental”, com mandato anual que já foi renovado dezenas de vezes e hoje tem validade até outubro de 2021, pois seu objetivo nunca se cumpriu. O Marrocos não quer o referendo porque não aceita a independência e quer agregar a região como um estado autônomo sob seu exclusivo comando. A Argélia e a Polisário defendem que somente os sahrawis devem votar, pois o que está em jogo é o seu destino. Nos últimos anos marroquinos foram deslocados em massa para a área e hoje já são maioria no território submetido à autoridade de Mohammad VI. O povo sahrawi, que em parte é nômade, está concentrado no campo de refugiados de Tindouf na Argélia, que é também a sede da Frente Polisário.

Até 1975 a região pertenceu à Espanha que, então, abandonou suas possessões coloniais, permanecendo apenas com Ceuta, Melilla e as Ilhas Canárias, incorporadas como cidades autônomas. Por seu lado, o reino do Marrocos logo mostrou ao que veio, erguendo um impressionante muro de 2.700 km – o maior muro do mundo feito com areia compactada e pedras, a fim de isolar o “seu Saara” sob o argumento de que precisava proteger-se contra ataques terroristas. É o “Muro da Vergonha” (Al-Yidar para o povo sahrawi), fortemente militarizado, tido como uma barreira de areia inexpugnável.

As implicações destes conflitos para o Saara em seu todo não são pequenas. Envolve três grandes países (Marrocos, Argélia e Mauritânia) que em conjunto possuem 84 milhões de habitantes numa área de 2,8 milhões de km2; as terras do Sahel, uma vasta savana entre o deserto e o mar vermelho; o instável equilíbrio entre Argélia (que banca a Polisário) e Marrocos; uma década de guerra na Líbia que contamina toda a região e o Mediterrâneo; a complexa situação do Mali seja pela pressão das ruas sobre o governo, seja pela permanente presença do terrorismo do Estado Islâmico no norte, onde a sempre desprezada minoria tuareg exige seus direitos e quer ter um papel mais ativo na política malinesa ou até mesmo a independência. Enfim, o Saara Ocidental é um barril de pólvora disposto a explodir por qualquer dá-cá-esta-palha.

Ao desconhecer os problemas da região em seu conjunto, o finado governo Trump ateou fogo numa chama que estava há anos quase apagada. Sua proposta de instalar serviços diplomáticos em Dakhla pode, adicionalmente, reavivar um conflito que aí tem estado quase ausente. Dakhla é um oásis: a Pérola do Atlântico com apenas 106 mil habitantes, situada bem no meio do deserto do Saara, a 1.000 km de Rabat, mas apenas a 22 km do Trópico de Câncer, o que lhe garante um clima quente de 25 graus o ano todo, sem chuvas e ventos propícios para a prática do surfe (já sediou o mundial da categoria). Local de férias preferido pelos ricos, tem atraído representações diplomáticas à procura de um paraíso até aqui dos mais tranquilos. O consulado norte-americano ainda não foi instalado, especulando-se que a nova administração de Joe Biden deverá anular a indevida interferência de seu predecessor, livrando o Saara de mais essa ameaça.

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