Dez anos depois, o que resultou da primavera árabe?

dezembro 21, 2020.

Vitor Pinto.

Escritor. Analista internacional.

Demonstração em Al Bayda, Libya, em 22/07/2011

Séculos de submissão a imperadores que se diziam eternos, fossem eles otomanos, ingleses, franceses ou americanos, fizeram os povos árabes acreditar que não tinham direito à democracia e nem ao menos à opinião, pois sempre deviam cega obediência a algum líder máximo de ocasião. Mesmo o século XX com suas modernidades e o exemplo de um mundo mais aberto não foi capaz de romper as rígidas barreiras sociais impostas pela religião e o islã permaneceu passivamente obediente a seus ditadores, fossem eles aiatolás ou generais.

Um impensável sopro de esperança

Particularmente no norte da África e no Oriente Médio, no entanto, a pobreza, a falta de perspectivas individuais e coletivas, a rigidez dos costumes, nunca deixaram de estar presentes principalmente para os jovens que nada mais faziam do que aguardar um bom motivo para algum dia reagir.

A panela de pressão afinal explodiu quando, na pequena cidade de Sidi Bouzid, no centro da Tunísia, um feirante não mais suportou as humilhações a que era submetido dia após dia pela soldadesca, pelos caciques políticos ou por gentes das castas superiores. Mohamed Bouazizi (26 anos de idade) fez o que outros de seus iguais já haviam feito, mas dessa vez agiu na frente da oficina de trabalho do governador local. Jogou gasolina sobre o próprio corpo e riscou o fósforo ateando as chamas que consumiram suas carnes. Era 17 de dezembro de 2010, uma 6ª. Feira, dia sagrado para os muçulmanos e o mercado estava cheio. Outros ambulantes correram a socorrê-lo, mas ele não resistiu às queimaduras e morreu em 4 de janeiro, sem saber que seu gesto afinal dera coragem a milhares de homens e mulheres simples como ele para irem às ruas país afora numa marcha espontânea de protesto que dez dias depois resultou na derrubada de Zine El Abidine Ben Ali que governava o país há 23 anos.

E então, qual rastilho de pólvora, o grito de “Al-shaab yureed iskat al-nizam” – Queremos a queda do regime – tomou as ruas nas principais cidades do Egito, Líbia, Iêmen, logo até da Síria e no Bahrein, incendiando o mundo árabe que parecia não acreditar no que estava acontecendo. A juventude e velhos batalhadores pela democracia entraram em êxtase, mal acreditando em sua força. Seguindo-se a Ben Ali que fugiu para a Arábia Saudita (onde faleceu por causas naturais no ano passado), sucessivamente caíram o egípcio Osny Mubarak que estava no poder desde 1981; Muammar Gaddafi com mais de 40 anos comandando a Líbia; Ali Abdullah Saleh no Iêmen e mais tarde Omar al-Bashir no Sudão. Esses cinco ditadores em conjunto ao serem destronados acumulavam nada menos que 158 anos no poder.

Em sua arrasadora passagem pelo Cairo o movimento ganhou o nome que o eternizou no mundo inteiro: Primavera Árabe que, então, parecia irresistível.

Chega o inverno

Para mostrar que as sementes da libertação e da democracia ainda podiam florescer, quase ao final da década, em 2018, uma nova onda de protestos sacudiu a modorra política árabe pedindo reformas democráticas na Argélia, Marrocos, Sudão, Iraque e Líbano. Novamente os resultados foram frustrantes. A mera remoção de alguns ditadores, por mais cruéis e emblemáticos que fossem, não se mostrou suficiente para de fato mudar o rumo da história.

No livro “The arab winter: a tragedy” (Princeton University Press, May 2020), o escritor norte-americano Noah Feldman, professor de direito em Harvard, cunhou a expressão “inverno árabe” para caracterizar a desmoralização do movimento que, em última análise, conseguiu fazer com que as vidas de muitas pessoas se tornassem piores do que eram antes do movimento ser iniciado com a autoimolação de Mohamed Bouazizi. Vista com os olhos de quem analisa a posteriori, pode-se dizer que a Primavera Árabe foi feita para falhar e na verdade não aconteceu, pois faltou-lhe uma noção concreta do que deveria vir depois e não desenvolveu as ações políticas necessárias para promover as mudanças. Permaneceram intocados os dois grandes vetores que dominaram a região no último século: o nacionalismo árabe e o Islã político.

Seguindo-se à incrível derrubada de Osny Mubarak que chegou a levar mais de um milhão de pessoas às ruas do Cairo, o Egito realizou eleições sem interferência do Exército e elegeu Mohammed Morsi da Irmandade Muçulmana para a presidência, mas um ano depois um golpe militar entregou o poder ao general Abdel Fattah el-Sisi que permanece no comando do país até hoje, impondo um regime ainda mais duro e absolutista do que o de Mubarak. Mantido na prisão e torturado, após 6 anos Morsi faleceu sem assistência médica, sozinho no cárcere.

No Bahrain, a única das monarquias do Golfo a ser pressionada, os protestos levaram o povo a ocupar o quarteirão central de Manama, a capital, num desafio da minoria xiita ao domínio da família Khalifa que é sunita, clamando por um parlamento a ser eleito pelo povo, mas logo veio a repressão com tropas enviadas pela poderosa vizinha Arábia Saudita e o controle imperial voltou.

Na Líbia o cerco e o assassinato de Muammar Gadafi (em Sirte, sua cidade natal) exigiu o envolvimento direto de forças francesas, britânicas e norte-americanas mas, ao invés de resolver os problemas criados pelo ditador, transformou o país num paraíso do tráfico humano pelo Mediterrâneo patrocinado pelo Estado Islâmico e por forças políticas desconectas que dividiram o país entre dois governos guerreando entre si.

A remoção de Abdullah Saleh, que governara o país por 33 anos, anulou a única força que precariamente ainda mantinha algum equilíbrio no Iêmen, o país mais pobre do Oriente Médio, instalando uma guerra civil na qual todos os países vizinhos e as grandes potências passaram a testar abertamente seus armamentos.

Os ativistas primaveris num primeiro momento acharam que seria possível “conquistar” Bashar al-Assad, considerando que o então (ano 2000) jovem oftalmologista ao substituir seu pai Hafez que governara por 30 anos seria mais maleável. Ideia vã. A Síria afundou numa guerra civil que já custou 380 mil vidas e ele precisou dez anos para se impor às forças da oposição, sendo salvo pelos impiedosos bombardeios promovidos pela Rússia de seu amigo Putin.

Restou a cereja do bolo, a Tunísia onde tudo começou com a Revolução dos Jasmins e que, ao invés de inventar um outro déspota, promoveu eleições livres que inicialmente deram maioria no Parlamento para o partido islamista Ennadha. Discordâncias internas entre grupos islâmicos mais ou menos radicais e uma crescente intervenção terrorista do Estado Islâmico (EI) - como o atentado de 2015 ao Museu Bardo em Túnis ou a execução de turistas estrangeiros num hotel à beira mar - lançou o país numa espiral de terror e medo. Em 2015 o Prêmio Nobel da Paz foi atribuído a um quarteto tunisiano composto por dirigentes da Federação da Indústria, dos Trabalhadores, da Liga de Direitos Humanos e da Ordem dos Advogados, numa decisão apressada do comitê julgador que superestimou a influência do grupo na política nacional. Em outras duas eleições, de 2015 e 2020, o comparecimento de eleitores às urnas minguou não ultrapassando os 41%. Com isso a Tunísia devolveu o poder a grupos políticos ultraconservadores para os quais os princípios da Primavera Árabe estão há muito desmoralizados. O presidente agora eleito, o jurista Kais Saied, é inimigo declarado dos homossexuais e fez campanha prometendo a implantação da pena de morte.

O que esperar do futuro?

Os otimistas dizem que apesar do fracasso do Egito e dos desastres na Síria e no Iêmen, os sucessos obtidos pela Primavera Árabe mesmo que provisórios ou descontínuos, são exemplos de revoltas populares que podem ser exitosas no longo prazo. Já os pessimistas prendem-se às palavras de Ayad Allawi, ex-1º Ministro do Iraque: “que primavera é essa? Primavera está associada ao verde e à renovação da vida. E na região só temos visto destruição, desmembramentos de países, o caos.”

Não obstante o futuro permaneça indefinido é verdade que o mundo árabe não é mais o mesmo. As multidões que marcham pedindo mais direitos, menos corrupção e mais oportunidades, começaram a ser vistas cada vez com mais frequência em países pouco acostumados à liberdade, como Marrocos, Líbano e Jordânia.

Um dos casos mais complexos é o da Argélia, onde um avassalador movimento popular pacífico conhecido como “Hirak” (significa “movimento”, mas chega a confundir-se com o nome do país), a Revolução dos Sorrisos, que primeiro impediu o eterno Abdelaziz Bouteflika de concorrer a um 5º mandato e depois se opôs ao poder absoluto concentrado nas mãos do Exército. Os resultados ainda são débeis, mas a luta continua. Em dezembro de 2019 só 40% dos eleitores compareceram às urnas, elegendo presidente ao independente Abdelmadjid Tebboune que, tentando legitimar-se, convocou o plebiscito para aprovar nova Constituição em 1º de novembro de 2020. Embora algumas liberdades fossem incluídas junto com a proibição para mais de uma reeleição, o poder dos militares permaneceu intocado. O grande vitorioso do referendo foi o “Hirak” ao pregar a abstenção. Com a ajuda da pandemia do coronavírus, mais de ¾ dos votantes ficou em casa: um recorde na história política argelina. A nova Carta foi aprovada, mas o mandato de Tebboune restou comprometido pela grande maioria silenciosa que não o aprova.

Os tempos da Primavera Árabe sem dúvida já passaram. Por um lado, as pessoas comuns descobriram em si uma força que não sabiam serem detentoras e se habituaram ao formato dos protestos não bélicos. De outro lado, os detentores do poder aprenderam muito na sua luta pela própria preservação; passaram a fazer concessões democráticas em geral só na aparência e acima de tudo se fortaleceram militarmente. Está mais difícil derrubar velhos e novos ditadores, mas a lição de que é possível ter sucesso não mais será esquecida.

O objetivo a ser alcançado não é exatamente uma democracia nos moldes ocidentais, uma vez que esta não é uma demanda clara nem para os povos árabes nem para os partidos políticos da região. Toda vez em que são chamados às urnas, como nos casos da Tunísia e da Argélia, por vezes conseguem apenas aumentar a confusão.

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