Cloroquina: um falso caminho

maio 22, 2020.

Vitor Pinto

Escritor. Doutor em saúde pública.

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Foto de Louis Reed em Unsplash

Resultados negativos

A maior editora de textos científicos do planeta, a holandesa Elsevier, publica em sua próxima edição, de julho/agosto-2020, o artigo original “Hidroxicloroquina em pacientes com Covid-19” escrito por quatro pesquisadores do Hospital e Instituto de Diabetes de Calcutá, Índia.

Trata-se de uma análise sistemática afirmando que o papel da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19 não é inteiramente conhecido, pois embora trabalhos iniciais tenham lançado algum raio de esperança, os estudos mais recentes mostram que além de não haver qualquer benefício são constatados possíveis danos em pacientes com Covid-19. Esta meta-análise mostra nenhum benefício na eliminação do vírus junto a um significativo aumento nas mortes de pacientes com Covid-19 tratados com hidroxicloroquina em comparação ao grupo controle.

Hydroxychloroquine in patients with COVID-19: A Systematic Review and meta-analysis

  • "The role of hydroxychloroquine in the treatment of COVID-19 is not fully known.
  • While initial studies with hydroxychloroquine showed some ray of hope, recent studies that have emerged found either no benefit or a possible harm in COVID-19.
  • This meta-analysis showed no benefit on viral clearance, although a significant increase in death was observed with hydroxychloroquine in patients with COVID-19, compared to the control."

Awadhesh Kumar Singh, Akriti Singh, Ritu Singh, Anoop Misra

Protocolo do Ministério da Saúde

Afora os governos de Nicolás Maduro na Venezuela e de Donald Trump nos Estados Unidos, a administração de Jair Bolsonaro apoia o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19, sendo o único país no mundo a explicitar seu uso numa diretriz expressa elaborada pelo Ministério da Saúde.

Como se não bastasse a ausência de qualquer comprovação científica do proveito dessas drogas, o protocolo estabelecido pela gestão de um general sem formação específica (seus auxiliares diretos, todos militares, também não têm) após o governo federal ter demitido em pleno auge da epidemia a dois ministros médicos, tem a coragem de exigir que os pacientes assinem um “Termo de Ciência e Consentimento”, com a intenção de comprometê-los com o tratamento que lhes é prescrito e de potencialmente livrar-se (o governo e o médico que assina a receita) de óbvias consequências jurídicas.

No aludido Termo o paciente, mesmo sem ter qualquer conhecimento na área, declara que “Compreendi, portanto, que não existe garantia de resultados positivos para a COVID-19 e que o medicamento proposto pode inclusive apresentar efeitos colaterais; Estou ciente de que o tratamento com cloroquina ou hidroxicloroquina associada à azitromicina pode causar os efeitos colaterais descritos acima e outros menos graves ou menos frequentes, os quais podem levar à disfunção de órgãos, ao prolongamento da internação, à incapacidade temporária ou permanente e até ao óbito. Por livre iniciativa, aceito correr os riscos supramencionados e dou permissão/autorização voluntária para que os medicamentos sejam utilizados da forma como foi exposto no presente termo”. Segue-se a Declaração do Médico Responsável: “Confirmo que expliquei detalhadamente para o(a) paciente e/ou seu(s) familiar(es), ou responsável(eis), o propósito, os benefícios, os riscos e as alternativas para o tratamento(s) /procedimento(s) acima descritos, respondendo às perguntas formuladas pelos mesmos, e esclarecendo que o consentimento que agora é concedido e firmado poderá ser revogado a qualquer momento antes do procedimento. De acordo com o meu entendimento, o paciente ou seu responsável, está em condições de compreender o que lhes foi informado”. Assinam o paciente ou seu responsável e o médico com seu CRM (inscrição no Conselho Regional de Medicina).

Internado e inteiramente submisso às determinações do médico, desejoso de agradá-lo na esperança de ser melhor cuidado e nem de longe desejando contrariá-lo ou duvidar de qualquer coisa, o doente pode dizer: “Não. Não assino. A responsabilidade pelo tratamento correto é sua”?

O estado da arte

A expressão “Estado da arte” resume a descrição dos conhecimentos sobre um determinado problema num momento dado. É o que faz a alemã Deutsche Welle, ao apresentar os fatos sob a manchete: “Hydroxycloroquine: using anti-malaria drug is a risky business” (Hidroxicloroquina: usar uma medicação anti-malárica é um negócio de risco”. Eis aqui uma síntese de sua análise:

a) O presidente Donald Trump, o brasileiro Bolsonaro e Elon Musk (milionário que é dono da empresa de carros elétricos Tesla e declara que as crianças são ‘essencialmente imunes’) asseguram que uma droga usada para combater a malária é o antídoto ao novo coronavírus, embora estudos mostrem que é ineficaz e potencialmente perigosa, como adverte a Food and Drug Administration (FDA);

b) Após uma desastrosa visita a Trump na Flórida em março último, 20 membros da delegação de Bolsonaro testaram positivo para a Covid-19. Mas, como um ex-atleta e paraquedista, o presidente brasileiro continuou a ignorar a distância social e a apertar mãos. Ordenou que os laboratórios militares produzam milhões de comprimidos e demitiu dois Ministros da Saúde;

c) A cloroquina e seu derivado hidroxicloroquina têm sido usadas para prevenir e tratar malária por décadas. Em testes realizados na China e na França afirmou-se que a substância ativa da cloroquina teria inibido a proliferação do novo coronavírus na cultura de células, o que foi logo interpretado como se a cloroquina pudesse reduzir a carga viral em pacientes experimentando uma severa progressão da doença. No entanto, recente estudo demonstrou que o padrão de mortalidade em pacientes tratados com hidroxicloroquina foi de 28% enquanto que nos não submetidos a ela foi de 11% (estudo em 368 pacientes de hospital para veteranos militares nos Estados Unidos);

d) Estudo desenvolvido no Inst. de Doenças Tropicais em Manaus, no Brasil utilizou dosagens elevadas de cloroquina (superiores às tradicionalmente empregadas no tratamento de malária) e teve de ser interrompido pela morte de onze pacientes no sexto dia da fase II, após crises violentas de arritmia;

e) Muitos pacientes com Covid-19 são bem mais idosos e têm maiores problemas pré-existentes que os acometidos pela malária. São, assim, mais sujeitos a ter alterações cardíacas como arritmia severa. Como no estudo de Manaus inexistiu um grupo de controle,é difícil afirmar que os óbitos foram devidos à cloroquina, ou à sua associação com o antibiótico azitromicina e com o Tamiflu (oseltamivir) que igualmente possui efeitos negativos sobre o ritmo cardíaco.

A Organização Mundial da Saúde viu-se forçada, diante das provocações crescentes do governo brasileiro, a emitir declaração no sentido de que “nesse momento a cloroquina e a hidroxicloroquina não foram identificadas como eficazes para tratamento da Covid-19”, completando que, no entanto, “cada nação é soberana para aconselhar seus cidadãos sobre o tipo de medicamento a usar”.

Numa reação interna, até hoje não tomada pelo Conselho Federal de Medicina, a Sociedade Paulista de Infectologia por intermédio de seu diretor Stanislau Madeiro expressou-se em relação à cloroquina e à hidocloroquina de que não só não há benefícios (para pessoas com Covid-19) como há risco”.

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