Refugiados, Covid-19 e guerra

maio 02, 2020.

Vitor Pinto

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Refugiados: grupo de elevado risco

Dos cerca de 71 milhões de pessoas que perderam suas casas mundo afora, 26 milhões vivem em mais de 200 campos de refugiados à espera que a paz seja restabelecida. Limítrofe com a Síria e com as regiões mais agressivas em relação à sobrevivência humana, a Turquia é o país que concentra o maior número de refugiados, seguida de perto por Bangladesh e Uganda. Nervosamente, a ACNUR – sigla para o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – corre contra o tempo na tentativa de proteger os residentes nos precários campos (todos provisórios e que superlotam ou esvaziam segundo os humores das guerras que forçaram sua instalação) contra a terrível ameaça de que sejam contaminados pelo novo coronavírus, o Covid-19.

As consequências podem ser arrasadoras, mas até agora não se materializaram. Considerando a quantidade de seres humanos confinados em um espaço de 1.000 m2, p.ex. no navio Diamond Princess eram 24; em Cox’s Bazar em Bangladesh 40 e no grego Moria Camp 204. Um sinal de alerta foi dado esta semana na Grécia onde há 62 mil refugiados, distribuídos em quatorze cidades e em seis ilhas (maioria em Atenas e Tessalônica). Num hotel de Kranidi, ao sul, onde estão 450 “hóspedes” africanos, 148 testaram positivo mas são assintomáticos. Nas ilhas Lesbos concentram-se refugiados do Afeganistão, Síria, Rep. Democrática do Congo, Iraque e Palestina. Metade é de crianças.

Os maiores campos são os de Bidi Bidi em Uganda com 270 mil refugiados do Sudão do Sul; Dadaab, um só conjunto de três campos no semiárido do Quênia que já chegou a abrigar 330 mil somalis; Kakuma no Quênia com 185 mil vindos do Sudão do Sul. Na Jordânia há 660 mil refugiados, 80% fora e 140 mil nos campos. Por Kutapalong em Bangladesh (apenas 13 km2), já passaram mais de 1 milhão de rohingyas expulsos de Myanmar, a ex-Birmânia. Embora sejam considerados moradas não permanentes, há homens e mulheres que aí residem por vinte anos, como em Dadaab que está prestes a transformar-se em uma cidade normal.

Em campos dedicados a deslocados internos no nordeste da Síria como na distante Qamismli, testes para o coronavírus realizados por pessoal da ONU são remetidos a um laboratório em Damasco duas vezes por semana, mas até hoje nenhuma resposta foi obtida.

Combate ao Covid-19 é uma guerra?

Principalmente líderes e governos militarizados gostam muito de comparar a luta contra o civid-19 com uma guerra, esquecendo-se que soldados e enfermeiras – os seus soldados – não foram treinados para matar inimigo e e sim para salvá-los. Em oportuno texto, Marwan Bishara analista sênior da Al Jazeera, comenta palavras de líderes como o chinês Xi Jinping que diz estar em uma “guerra popular” contra o novo desafio; o francês Emmanuel Macron e o britânico Boris Johnson que se referem à pandemia como “uma guerra” e naturalmente a Donald Trump que se intitula o “presidente da guerra lutando contra o inimigo invisível”. Isso apesar dos fracassos tão recentes das guerras americanas contra a pobreza, o câncer, as drogas, o crime ou o terror. No Brasil, onde muito pouco foi feito, embora amplamente avisado com a devida antecedência, pelo governo, cujo vice-presidente depois de dizer que esta é a primeira epidemia da internet, afirmou assustado que “estamos em guerra”.

A principal razão pela qual líderes adotam a metáfora da guerra é de que ela lhes garante autoridade para declarar estados de emergência a fim de impor medidas excepcionais e mobilizar recursos. Medidas como fechamento de negócios e quarentenas, embora necessárias, nunca seriam aceitáveis em tempos de paz e de normalidade institucional. Trata-se de uma guerra defensiva, dizem, pois não temos escolha diante do ataque repentino do vírus. Então, precisamos retaliar, lutar com tudo o que temos e o estado de guerra torna tudo mais simples. O povo não necessariamente entende particularidades técnicas referentes a epidemias, vírus e suas repercussões no organismo humano, mas entende bem o que é uma batalha e aceita as chances de suas consequências, bem como melhor se predispõe a fazer os sacrifícios que lhe forem impostos.

A questão é que o estado de guerra não somente permite aos líderes fazerem o que é necessário e sim o que eles querem. De qualquer maneira o foco muda e passa a ser “lutar” ao invés de “curar”. A compaixão cede seu lugar para a coragem exigida para liquidar com o inimigo e os efeitos colaterais da guerra passam a ser vistos como inevitáveis. Como declarou um entusiasmado médico ao canal Fox News, a reabertura das escolas é uma tentadora oportunidade, pois custará menos de 3% em termos da mortalidade total. No Brasil, com esse mesmo espírito, o presidente Bolsonaro ao ser confrontado com os dados de óbitos do dia, perguntou: “e daí?”.

Um problema a mais surge quando o presidente resolve atuar como o médico-chefe e sai a emitir decretos e a sugerir medicamentos tão milagrosos quanto bizarros para combater inimigos tão complexos quanto o Covid-19. No caso de Trump, ele partiu de uma acusação vazia a um suposto embuste, uma peça pregada pelos Democratas, chegando a descobrir um “vírus chinês” e a tentar destruir a credibilidade da Organização Mundial da Saúde propondo até mesmo retirar-lhe recursos num dos mais críticos momento da pandemia. O britânico Johnson impôs seu assessor político ao grupo científico (SAGE) cuja missão é aconselhar cientificamente o governo em relação à pandemia. No outro extremo do planeta, o brasileiro Bolsonaro não só demitiu o ministro da saúde e sua equipe como promoveu uma intervenção militar no Ministério ao colocar um general como 2º homem hierárquico na sua direção. Exatos quatorze dias depois, como estava previsto e sem nenhuma intervenção que a barrasse, a curva de incidência transformou-se quase que numa reta vertical colocando o Brasil na trágica liderança global de expansão e agravamento da pandemia.

Guerras terminam com a submissão do adversário, mas os vírus nunca se rendem. Eles apenas sofrem mutações e eventualmente ressurgem ainda mais agressivos. O homem tem alcançado impressionantes vitórias na arte de matar uns aos outros em suas guerras reais, mas costuma falhar miseravelmente quando se trata de impedir sua própria destruição frente a problemas como os ambientais ou como a recente “guerra da Aids”, cujo vírus infectou mais de 74 milhões e matou 32 milhões no mundo todo. Enquanto enfrentarmos as doenças e suas epidemias com estratégias e táticas militares, guerreando contra elas ao invés de as compreendermos e de prevenirmos oportunamente sua irrupção, certamente continuaremos amargando derrota após derrota.

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