Covid-19: evidências insuficientes

março 23, 2020.

Vitor Pinto em 22/03/2020

O título acima é originado de um texto publicado pelo professor John P.A. Ioannidis, um grego-americano de 54 anos, dia 17 último como First Opinion no STAT do Boston Globe Media, site dedicado a temas de saúde e descobertas científicas, com sede em Boston. O autor é médico, diretor do Centro de Pesquisas em Prevenção, professor de epidemiologia e saúde pública, de informações científicas biomédicas e de estatística na Universidade Stanford.  

O texto original em inglês foi proporcionado a Mundo Século XXI (que publica sua essência em tradução livre) pelo Professor Emérito da UNB José Dórea e pode ser lido em: https://www.statnews.com/2020/03/17/a-fiasco-in-the-making-as-the-coronavirus-pandemic-takes-hold-we-are-making-decisions-without-reliable-data/.

Um fiasco em formação? Como à medida em que a pandemia do coronavírus se mantém, estamos tomando decisões sem informações confiáveis – John P.A. Ioannidis.

A atual doença por coronavírus, Covid-19, tem sido denominada de a pandemia do século. Contudo, também pode ser o fiasco de evidências do século. Numa época em que os governos e todos necessitam melhores informações a respeito das doenças para estabelecer quarentenas populacionais ou apenas a manutenção de distância social, faltam-nos evidências confiáveis sobre como muitas pessoas têm sido infectadas com o SARS-CoV-2 ou quem continua infectado. Melhor informação é necessária para fundamentar decisões e ações de monumental significado e para monitorar seus impactos.

Contramedidas draconianas têm sido adotadas em muitos países. Caso a pandemia se dissipe – seja por si mesma ou devido a essas medidas – distanciamento social extremo e bloqueios populacionais no curto prazo podem ser aceitáveis. Por quanto tempo, entretanto, deveriam essas medidas ser mantidas caso a pandemia não seja contida e se espalhe pelo globo? Como os formuladores de políticas podem afirmar que eles estão fazendo mais bem do que mal?

Vacinas ou tratamentos acessíveis levam meses (ou mesmo anos) para serem testadas e desenvolvidas apropriadamente. Considerando-se a limitada testagem, as consequências de bloqueios de longo prazo são inteiramente desconhecidas.

Os dados coletados sobre como muitas pessoas são infectadas e como a epidemia está evoluindo são profundamente não confiáveis. Dada a limitação dos testes até aqui, informações sobre óbitos e provavelmente sobre a grande maioria das infecções atribuídas ao SARS-CoV-2 estão sendo perdidas. Não sabemos se estamos falhando ao computar as infecções por um fator 3 ou 300. Três meses após o problema surgir, muitos países, incluindo os Estados Unidos, não contam com a possibilidade de realizar testes (para confirmação de casos) em um amplo número de pessoas e nenhum país possui dados confiáveis sobre a prevalência do vírus em uma amostra representativa da população geral.

Este fiasco de evidências cria tremenda incerteza a respeito dos riscos de morrer do Covid-19. Taxas de fatalidade informadas, como o oficial 3,4% dito pela Organização Mundial da Saúde causa horror – e são sem sentido (inconfiáveis). Pacientes que têm sido testados para SARS-CoV-2 são desproporcionadamente aqueles com sintomnas severos e más perspectivas. Como a maioria dos sistemas de saúde contam com limitada capacidade de realização de exames, o viés de seleção pode piorar no futuro próximo.

No único caso em que toda uma população confinada foi examinada, a do cruzeiro Diamond Princess, os passageiros do navio ficaram em quarentena. A taxa de fatalidade ali foi de 1,0%, mas é proveniente de um grupo majoritariamente idoso, no qual o índice de mortes pelo Covid-19 é muito mais alto.

Projetando a taxa de mortalidade do Diamond Princess na estrutura etária da população americana, a taxa de óbito entre pessoas infectadas pelo Covid-a9 seria de 0,125%. Entretanto, uma vez que esta estimativa se baseia em dados extremamente fracos – houve apenas sete mortes entre os 700 passageiros e tripulantes atingidos – a taxa real poderia variar de três vezes menos (0,025%) a cinco vezes mais (0,625%). Também é possível que alguns dos passageiros que foram infetados possam morrer depois, e que turistas possam ter diferentes padrões de doenças crônicas – um fator de risco para piores prognósticos a partir da infecção pelo SARS-Cov-2 do que para a população em geral. Adicionando tais fontes de incerteza, estimativas razoáveis para uma taxa de fatalidade para a população dos Estados Unidos varia entre 0,05% e 1,0%.

Esta enorme variação certamente afeta o quão severa é a pandemia e o que deveria ser feito. Uma taxa populacional de 0,05% é menor que a da influenza sazonal. Caso esta seja a taxa real, estabelecer bloqueios mundiais com tremendas consequências sociais e financeiras pode ser totalmente irracional. Seria como um elefante sendo atacado por um gato doméstico. Frustrado e tentando evitar o gato, o elefante acidentalmente cai num penhasco e morre.

Poderia a taxa de fatalidade no caso do Covid-19 ser tão baixa? Não, alguns dizem, observando as altas taxas em pessoas idosas. Contudo, mesmo alguns coronavirus leves ou os comuns que causam resfriados e são conhecidos há décadas podem ter taxas de fatalidade tão elevadas como 8% quando eles infeccionam pessoas em casas de cuidados para idosos. Na verdade, tais coronavirus “leves” afetam dezenas de milhões de pessoas a cada ano, e respondem por algo entre 3% e 11% dos que são hospitalizados nos EUA com infecções respiratórias passageiras a cada inverno. ...

Alguns se preocupam de que os 68 óbitos devidos ao Covid-19 nos Estados Unidos (conforme dados de 16 de março) crescerão exponencialmente para 680, 6.800, 68.000, 680.000, acompanhando padrões catastróficos globais. É este um cenário realista, ou má ficção científica? Como podemos dizer em que ponto a curva pode parar?  

A mais valiosa fonte de informação para responder essas questões seria o conhecimento da atual prevalência da infecção em uma amostra randômica de uma população. Repetindo o exercício em intervalos regulares de tempo para estimar a incidência de novas infecções. Lamentavelmente, não possuímos estas informações.

Na ausência de dados, preparar-para-o-pior raciocínio conduz a medidas extremas de distanciamento social e bloqueios de grupos populacionais. Infelizmente, não sabemos se essas medidas funcionam. O fechamento de escolas, por exemplo, pode reduzir a transmissão. Mas eles podem, também, ter um efeito contrário se as crianças forem socializadas de qualquer jeito, se isto levar as crianças a passarem mais tempo com membros mais idosos da família, se a permanência em casa retirar a capacidade de seus pais trabalharem, etc. O fechamento das escolas pode, ainda, diminuir as chances de desenvolvimento de imunidade coletiva em um grupo etário poupado de doenças severas*. ...

O achatamento da curva de evolução de casos para evitar o comprometimento (por superlotação) do sistema de saúde parece conceitualmente correto, em teoria. A visualização dessa curva tornou-se uma imagem comum na mídia mostrando o quanto uma curva de expansão achatada reduz o volume da epidemia que está acima do limiar daquilo com que o sistema de saúde pode lidar num momento qualquer.

Caso o sistema de saúde ficar superlotado, a maioria das mortes excedentes podem não se dar por causa do coronavirus e sim por outras doenças e condições comuns como ataques cardíacos, derrames, trauma, hemorragias e tudo aquilo que não tiver sido adequadamente tratado. Se o nível da epidemia superar a capacidade do sistema de atenção à saúde e as medidas extremas tiverem apenas modesta efetividade, então o achatamento da curva pode tornar a situação pior: ao invés de ficar superlotado durante uma breve fase aguda, o sistema de saúde permanecerá pressionado por um período mais longo. Esta é outra razão pela qual nós necessitamos de dados sobre o desenvolvimento das infecções a fim de guiar os tomadores de decisões.

No cenário mais pessimista, o qual eu não espero que ocorra, caso o novo coronavirus atinja a 60% da população mundial e 1% das pessoas afetadas morra, isso se traduzirá em mais de 40 milhões de mortes em todo o mundo, comparando-se à epidemia de 1918 (gripe espanhola).

A grande maioria dessa hecatombe atingirá pessoas com limitada expectativa de vida, o que contrasta com o caso de 1918, quando muitos jovens faleceram.

Podemos apenas esperar que, como se deu em 1918, a vida continuará. Ao contrário, sob bloqueios de meses, se não anos, a vida de grandes grupos será interrompida e como consequências de curto e longo prazos são inteiramente desconhecidas, bilhões - não apenas milhões - de vidas podem ser colocadas em jogo.

Se decidirmos pular no penhasco, precisamos alguns dados que nos informem sobre as razões de tal atitude e sobre quais são as chances que temos de aterrissagem em algum lugar seguro.” (jioannid@stanford.edu)

(Breve comentário final do responsável pelo Site: uma vez que o centro da argumentação do Prof. Ioannides está na ausência de evidências confiáveis sobre a evolução do Covid-19, seria pedir-lhe demais que identificasse uma solução alternativa para o imenso embróglio em que estamos metidos. Em verdade, até o momento não temos um caminho científico que nos guie, mesmo porque não sabemos quando o pico da contaminação se dará em cada país, embora saibamos que ele ocorrerá. O agravamento do quadro sanitário na Itália (5 mil mortos e impressionante taxa de letalidade de 9% em relação aos diagnósticos), os números favoráveis da Alemanha e preocupantes do Irã e da Espanha, ademais da relevância de adultos de média idade nos casos brasileiros, são fenômenos não explicados devido ao conhecimento insuficiente sobre a pandemia e às limitações da epidemiologia e da própria ciência médica, que por um lado dão razão às palavras do mestre de Stanford ao mesmo tempo em que de certa forma o contradizem pela extrema gravidade do quadro que hoje se desenha particularmente no sul da Europa. Esperamos que a larga e boa tradição do Brasil, cujos sanitaristas há mais de um século têm enfrentado (mesmo dispondo de limitados recursos) surtos epidêmicos os mais variados, ajude a população a superar com a maior celeridade possível o atual pesadelo.)

*. O Reino Unido, que vinha mantendo suas escolas abertas, decidiu fechá-las a partir de 19 de março de 2020.

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Esplanada dos Ministérios em Brasília: vazia no meio da manhã devido ao medo do coronavirus - imagem de Sérgio Lima/Poder 360, em 20/3/2020

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