GORILAS DE RUANDA

fevereiro 23, 2020.

Vitor Pinto

Escritor, analista internacional

No Parque Nacional dos Vulcões a visita às famílias de Gorilas da Montanha é uma das mais ativas fontes de renda para o turismo de Ruanda. É possível vê-los em seu habitat natural entre 3 mil e 5 mil metros de altura, desde que acompanhado por guias e a uma prudente distância de pelo menos sete metros. Com mais um dia vai-se à Nyungwe Forest onde estão os nutridos chimpanzés. No retorno a Kigali, a capital, aqueles que têm bom “estômago” podem percorrer os corredores de pelo menos dois Memoriais dedicados ao genocídio que em 1994 ocasionou a morte de 1.074.017 ruandeses, a maioria da etnia tutsi assassinados pelos hutus. Um deles, o Memorial Murambi expõe 850 esqueletos mumificados das vítimas. O outro, o Gisozi, está localizado onde jazem 300 mil corpos. Naquele ano, um foguete terra-ar derrubou o avião em que viajavam os presidentes hutus de Ruanda e de Burundi. Em resposta a rádio Libres des Mille Collines incitou o povo a “eliminar as baratas tutsis”, o que em 100 dias ocasionou uma das maiores matanças étnicas da humanidade.

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Paul Kagame e filha com o casal Obama na Casa Banca

O povo ruandês está dividido em três etnias: os tutsis, um dos povos de maior estatura da terra, a classe dirigente, que responde por 14% dos habitantes; os hutus, atarracados, mais baixos, a classe trabalhadora, com 85% e os twas, pigmeus com 1%.

O difícil processo de paz mediado pela ONU afastou as Forças Democráticas para a Liberação da Ruanda (FDLR) e permitiu que a Frente Patriótica Ruandesa (FPR) liderada pelo tutsi Paul Kagame tomasse o poder. Desde então ele é o presidente e graças a mudanças na Constituição por ele mesmo propostas tem permissão para continuar até 2034, o que certamente ocorrerá a julgar pelos resultados das últimas eleições quando as urnas lhe deram 98,6% dos votos.

Ditadura esclarecida

Paul Kagame é simpático, tem um modo afável de comandar e promoveu uma verdadeira revolução econômica no país.

Stéphane Cabaret, nascido em Reims e hoje residente em Brasília, sempre atento ao que acontece especialmente na África de fala francesa, analisa a situação com base na repartição da África promovida pela Conferência de Berlim de 1884 e na monstruosidade do genocídio ruandês cento e dez anos depois com o massacre dos tutsis: “quando evocamos o presidente Kagame poderíamos considerá-lo como muito autoritário, porém a situação era desastrosa e hoje o país conseguiu se reerguer graças a ele. Mesmo se o equilíbrio é frágil, a recuperação é fantástica pois em duas décadas conseguiram pacificar os dois campos e agora o país é um dos mais dinâmicos do continente do ponto de vista tecnológico e das inovações sociais”. 

   Com uma população de 13,8 milhões de habitantes num território sem acesso ao mar de 26,3 mil km2, muito perto do estado de Alagoas e só um pouco maior que Sergipe, Ruanda desde 2007 tem tido um crescimento sustentado por volta de 8% ao ano, o segundo melhor de toda África. Apesar das melhoras com o governo de Kagame, com um PIB de US$ 2,225 (PPP – Poder Paritário de Compra), o 165º do globo, Ruanda continua sendo um país pobre. A população que vive abaixo do nível de pobreza está diminuindo, mas ainda é 45% do total. Sem possuir grandes riquezas em seu território, sua economia se sustenta com a produção de coltan (um minério de onde se extrai nióbio e tântalo, fartamente usados como componentes eletrônicos para celulares, computadores, câmaras fotográficas) e com menor relevância ouro, cassiterita, café, chá e couro. Avaliações do Banco Mundial indicam que é o 2º melhor país do continente para fazer negócios, mas índices como esse foram em muito desmoralizados pelos problemas sofridos pela economia do Chile que fracassou apesar dos indicadores econômicos globais favoráveis.

Acordos e desacordos com Uganda

Ditadores costumam ser amigos somente para tomar o poder. As relações entre Paul Kagame e seu vizinho Yoveri Museveni de Uganda já foram quase perfeitas. Em 1986 Kagame foi um soldado do movimento rebelde que colocou Museveni no governo por meio de um golpe de estado em Kampala. Cerca de uma década mais tarde o favor foi pago com o fornecimento de armas, território e milicianos facilitando a tomada do poder em Kigali. Em seguida, os dois uniram forças para derrubar o então eterno Mobutu Sese Seko e substitui-lo por Laurent Kabila na República Democrática do Congo (RDC). No entanto, o mútuo relacionamento foi sendo minado gradativamente pelas disputas regionais e de fronteira.

Uganda é quase dez vezes maior que Ruanda (a população é pouco mais do que o triplo), mas o PIB per capita das duas nações é similar. Recentemente os desacertos levaram a um clima de confronto e ao fechamento da fronteira, o que vem causando sérios prejuízos face ao bloqueio de produtos por ela transacionados e que no ano passado representaram um movimento estimado em 300 milhões de dólares. Kagame acusa Museveni de financiar ataques terroristas e de armar seus inimigos com a intenção de derrubá-lo. Este nega tudo e, por sua vez, reclama dizendo que o vizinho frequentemente invade o território ugandês.

Para encontrar uma solução e provavelmente reabrir a fronteira, os dois encontram-se nesta próxima 5ª. Feira, 27 de fevereiro de 2020 nas pequenas localidades fronteiriças de Katuna/Uganda (1300 moradores) e Gatuna/Ruanda (41 mil residentes), nas quais só funcionam de fato os postos de controle de mercadoria transportados entre os dois países mas que também servem de intensa comunicação entre os mercados do sul e do oriente da África.

O encontro foi organizado por João Lourenço, presidente de Angola com apoio do presidente da RDC. Aguardando as decisões de cúpula, milhares de caminhões ocupam as estradas, mas a expectativa é maior de parte dos prisioneiros nas tórridas cadeias ruandesas e ugandesas, pois se espera que um acordo permita a troca de uns pelos outros.

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