Agrava-se a crise das livrarias no Brasil

novembro 26, 2018.

Severa e sem equacionamentos à vista, a crise brasileira é profunda particularmente em setores mais sensíveis que, por não serem vistos pela população como absolutamente essenciais.

É um país sem leitores e, cada vez mais, sem livrarias. Mundo Século XXI divulga as reportagem abaixo, da revista Isto É Dinheiro e do site JC, referente ao "estouro" da Saraiva e da Cultura, as duas maiores redes setoriais do país. Se as grandes estão assim, o que dizer das pequenas? E das Editoras?

A crise que rouba livros

Atoladas em dívidas, a Livraria Cultura e a Saraiva pressionam o mercado de livros. O futuro das editoras, que dependem das duas grandes redes, é incerto

Quando a septuagenária rede de livrarias Laselva entrou com um pedido de recuperação judicial em 2013, com dívidas acumuladas em R$ 120 milhões, poucos imaginavam que aquilo seria um presságio de maus tempos para o setor editorial brasileiro. A empresa, que chegou a ter 83 pontos de venda – a maioria em aeroportos –, não conseguiu arcar com o plano traçado para a sua recuperação, deixando mais de 600 credores e centenas de funcionários na mão. Como consequência, a Laselva teve de fechar suas últimas três lojas em março deste ano, data em que a Justiça de São Paulo decretou sua falência. Durante esse mesmo período de declínio da tradicional rede, os dois principais nomes do mercado, Cultura e Saraiva, experimentavam uma expansão acelerada pelo País, financiada por linhas de crédito do BNDES e empréstimos com os bancos privados.

A aposta no crescimento, no entanto, deu errado. Desde o fim de 2013, o setor editorial acumula perdas consecutivas, com um decréscimo de R$ 1,73 bilhão em suas receitas. Com dívidas elevadas, Saraiva e Cultura lutam para manter as portas abertas. “Isso era uma crise anunciada, pois existe uma pressão de custos que é insuportável, tanto fiscal quanto operacional”, diz Bernardo Gurbanov, presidente da Associação Nacional das Livrarias (ANL). “O mercado de livros vai ter que voltar às origens. Esse efeito sanfona de expansão e retração está mostrando os seus limites.” Voltar às origens significa trabalhar com menos lojas e com espaços reduzidos, mas mantendo o foco em livros, uma alternativa possível para voltar a crescer.

Embora não seja uma empresa de capital aberto, a crise da Cultura já era conhecida. Desde 2015, a rede viu seu faturamento cair em aproximadamente 30%. Em 2016, a varejista declarou uma receita de R$ 380 milhões e passou a acumular dívidas com boa parte dos fornecedores. Por isso, surpreendeu a todos quando anunciou, em 2017, que estava adquirindo a operação brasileira da Fnac. Os detalhes da negociação foram mantidos em sigilo, a princípio. Mas, semanas depois do acordo, descobriu-se que a varejista francesa dedicou €36 milhões à Cultura para que mantivesse suas 12 lojas abertas no País e renegociasse seus passivos.

Para muitas pessoas do mercado, aquele foi um “passo maior que a perna”, e um dos fatores que decretou a situação atual da Livraria Cultura, que entrou com um pedido de recuperação judicial na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, em 24 de outubro. “Se a Fnac estava pagando R$ 135 milhões para sair do Brasil é sinal de que o negócio não vinha bem”, diz Marcos da Veiga Pereira, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel). “Após a aquisição da Darty na Europa, em 2016, a Fnac decidiu focar no varejo da região, e ‘vender’ seus ativos no Brasil, mesmo com todas as transformações de categorias, investimentos em multicanalidade e em gestão comercial e operacional que estavam sendo implementadas”, disse uma fonte que gerenciou a operação brasileira da Fnac.

Com espaços em pontos comerciais caros e operando unidades deficitárias, a Fnac era um elefante branco. Prova disso é de que a Cultura não demorou muito para fazer o ‘trabalho sujo’ de fechar lojas e demitir funcionários. Em 15 meses, as 12 lojas da Fnac espalhadas por sete Estados do País deixaram de existir. No mês de outubro, parte dos funcionários desligados da rede fizeram manifestações na principal loja da Cultura, no Conjunto Nacional, em São Paulo, por conta do atraso no pagamento de verbas indenizatórias. “A Cultura virou as costas para tudo aquilo que a fez ser uma livraria extraordinária até o final dos anos 1990. Ela deixou de dar atenção para os livros, passando a vender CDs, DVDs e itens de papelaria. Perdeu seus funcionários mais experientes e deixou de ter o acervo criterioso que tinha”, diz o editor e livreiro Alexandre Martins Fontes, que vê a receita de sua livraria localizada na Avenida Paulista crescer numa média de 30% ao mês, com o vácuo deixado pelas grandes redes na região.

A Saraiva, por sua vez, também apresenta problemas financeiros de longa data. Uma análise dos resultados trimestrais dos últimos dez anos mostra que as margens da atividade principal vêm encolhendo de maneira gradual, mas irreversível. No segundo trimestre de 2008, ao faturamento – corrigido pela inflação – de R$ 343 milhões corresponderam um lucro bruto de R$ 140 milhões, com margem de 40,8%. A última linha do balanço, porém, já mostrava um prejuízo líquido de R$ 22,3 milhões, decorrente de um salto nas despesas administrativas naquele trimestre.

Dez anos depois, a situação piorou sensivelmente. O faturamento registrado no segundo trimestre de 2018 foi de R$ 368 milhões, parecido, em termos reais, com o de dez anos antes. A margem bruta, porém, encolheu mais de dez pontos percentuais, reduzindo-se de 40,8% para 29,5%. Não por acaso, os acionistas não gostaram. Ao longo de sete anos, o valor de mercado da empresa recuou de R$ 1,8 bilhão desde o ápice em janeiro de 2011 até R$ 68 milhões na quarta-feira 7. Uma queda de 96,3% na capitalização da empresa, resultado digno das páginas de uma peça trágica.

Após se reunir com editoras no primeiro semestre deste ano, a Saraiva afirmou que buscava negociar “prazos mais flexíveis junto aos seus parceiros comerciais”. Ficou definido então um “reescalonamento das dívidas” da empresa com seus fornecedores, mas os atrasos voltaram a acontecer. Juntas, Cultura e Saraiva devem R$ 240 milhões para as editoras, segundo estima o Snel. “As editoras estão com muito medo de ver suas dívidas aumentarem, por isso estão cortando o abastecimento para essas redes”, diz Veiga Pereira. A Saraiva só não acusou o golpe antes porque vendeu sua operação de educação da Editora Saraiva em 2015, por R$ 725 milhões.

Na época, o montante gerou um estímulo para a empresa, que conseguiu abrir novas lojas e aprimorou seu e-commerce. Em 29 de outubro, poucos dias após o pedido de recuperação judicial da Cultura, a Saraiva comunicou que estava fechando 20 unidades, readequando seu quadro de funcionários “em busca de maior competitividade e desenvolvimento sustentável de sua operação de varejo”. Oito dessas operações descontinuadas eram lojas iTown. Além disso, outra ação da empresa seria uma mudança no mix de produtos, com a venda de itens voltados à telefonia e informática passando apenas para o ambiente virtual.

No mundo, algumas ações prometem virar tendência. Em Paris (FRA), a escassez de estoque da Librairie des Puf chama atenção. Operada pela editora Presses Universitaires de France, a livraria trabalha com títulos sob demanda. Ela imprime os livros na hora, de acordo com o pedido do cliente, através de uma Espresso Book Machine (máquina expressa de livros, em tradução livre). “Um projeto como esse seria muito bem vindo numa época como a nossa”, diz Luís Antonio Torelli, presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL). “Mas a nossa realidade é outra. Para enfrentar essa crise, uma de nossas ideias são feiras itinerantes de livros, que precisam receber mais apoio do governo.” A CBL também organiza a Bienal Internacional do Livro de São Paulo, que obteve um público visitante de 663 mil pessoas em agosto. Os números da Bienal crescem a cada edição, mostrando que ainda estamos longe de ver os livros se tornarem obsoletos, como num romance distópico do americano Ray Bradbury.

''Crise das livrarias Cultura e Saraiva é apenas a ponta do iceberg'', diz livreiro

Enquanto cresce lentamente o número de leitores no Brasil, cai o de livrarias

Publicado em 18/11/2018, às 09h00

Livraria Cultura no Bairro do Recife fechou as portas em julho deste ano / Foto: acervo JC Imagem

Livraria Cultura no Bairro do Recife fechou as portas em julho deste ano

Foto: acervo JC Imagem

Edilson Vieira Repórter de Economia

O mercado brasileiro de livros vai fechar o balanço de 2018 com mais leitores e menos livrarias. No primeiro semestre deste ano, o setor registrou faturamento 9,97% maior em relação ao mesmo período do ano anterior. O volume de vendas também subiu 5,24%. A tendência é fechar o ano de 2018 com números positivos, depois da queda de 9% em 2016 e um tímido crescimento de 3% no ano passado. Mas o que era para ser comemorado é apenas um capítulo da pior crise que o setor enfrenta nos últimos anos, com fechamento de pequenas, médias e grandes empresas. Panorama do Setor Cultural, feito pelo IBGE, mostra que em 2001, 42% dos municípios do País tinham livrarias, número que caiu para 27% em 2014.

As dificuldades financeiras das duas maiores redes de livrarias do País, Cultura e Saraiva, é a parte mais visível deste cenário. A primeira, fechou 20 livrarias (incluindo a megastore do Bairro do Recife, no último mês de julho), e está em processo de recuperação judicial, com uma dívida com fornecedores estimada em R$ 300 milhões. Segundo o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), em março deste ano, a Saraiva comunicou às editoras que não pagaria os valores relativos às vendas do último período de Natal, volta às aulas e títulos universitários. Ainda segundo o Snel, no mês passado, a Cultura também interrompeu pagamento, descumprindo os acordos de confissão de dívida pactuados com as editoras.

Já a Saraiva divulgou na semana passada seu mais recente balanço. A dívida acumulada no semestre é de cerca de R$ 120 milhões, fazendo com que a empresa desista do comércio de produtos eletrônicos em suas lojas, feche pontos de venda deficitários e demita 700 funcionários. Pela Lei de Falências, a Saraiva precisaria convencer pelo menos 60% dos seus credores para entrar com o pedido de recuperação extrajudicial. As condições propostas pela livraria incluem concessão de desconto de 40% na dívida e prazo de pagamento de até dez anos.

LIVRARIAS

A ideia de recuperação extrajudicial da Saraiva foi rechaçada pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), que prefere que a empresa parta direto para a recuperação judicial, um processo mais rápido. Na assembleia do próximo dia 22, o sindicato vai expor a seus associados o conteúdo das conversas com ambas as empresas. Juntas, as redes Cultura e Saraiva chegam a representar quase 40% do faturamento de algumas editoras. "Ainda não chegamos a uma fórmula para salvar essas redes, afetadas por problemas de gestão. O Snel tem se empenhado em propor o debate e a união das editoras, que, sem receber pagamentos, vêm sofrendo com perda de capital de giro, redução do quadro de funcionários e do número de lançamentos. Lamentavelmente, a crise acontece às vésperas do período mais importante do ano, com as vendas da Black Friday, do Natal e da volta às aulas”, afirmou em nota o presidente do Snel, Marcos da Veiga Pereira.

Para o presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL), Bernardo Gurbanov, o aumento das vendas em 2018 é apenas uma lenta recuperação do mercado perdido nos últimos anos. Para ele, esta é a pior crise que o setor livreiro já enfrentou. “A recessão já vinha acontecendo há quatro anos. A Saraiva e a Cultura são apenas a ponta do iceberg. Muita gente já ficou pelo caminho, a exemplo da rede La Selva, conhecida pelas livrarias nos aeroportos. Ela não conseguiu cumprir as metas da recuperação judicial e acabou falindo”, lembra Gurbanov.

Pernambuco registrava em 2014, 73 livrarias, 64 delas no Recife. O presidente da ANL diz que o Brasil tinha, em 2013, 3.095 livrarias. Hoje são cerca de 2.500. Um número baixíssimo, segundo ele. “A Unesco recomenda uma livraria para cada 10 mil habitantes. Deveríamos ter, então, pelo menos 20 mil livrarias”, afirma.

SAÍDAS

Uma crise tão ampla não atinge apenas as livrarias, mas também as editoras. E não faltam críticas à política nacional para o setor. Presidente da Libre (Liga Brasileira de Editoras), que reúne cerca de 160 editoras independentes, Raquel Menezes acredita que o fim do Programa Nacional Biblioteca nas Escolas (PNBE), em 2014, aumentou a dependência de muitas editoras das vendas no varejo. Entre 2000 e 2014, o PNBE garantiu a compra e distribuição de 230 milhões de livros para bibliotecas escolares. Um investimento de R$ 891 milhões no período.

Em relação a possível concorrência dos livros eletrônicos sobre os tradicionais impressos, Raquel diz que isso está longe de ser um problema. “O e-book representa 1% do total de faturamento de livros no Brasil. Mesmo nos Estados Unidos a venda de e-books é menor”, afirma. Raquel chama a atenção para outra concorrência, segundo ela, desleal. A dos grandes atacadistas que vendem livros, muitas vezes apenas como chamariz para outros produtos, oferecendo descontos irreais ou até mesmo abaixo do preço de custo. Ela diz que é preciso respeitar a cadeia produtiva do livro que envolve editoras, distribuidoras, editoras e livrarias. “Um dos pontos que devem ser revistos é a consignação. Oitenta por cento dos livros vendidos atualmente chegam às lojas neste regime de venda que penaliza o editor, caso a livraria venda e não faça o repasse a quem botou o dinheiro na frente custeando a produção”, afirma.

O setor defende ainda a criação de uma lei do preço fixo, que estipule o teto máximo de 10% de desconto para os lançamentos. Esse teto seria válido por um ano. Pedido neste sentido está parado desde março deste ano na Casa Civil da Presidência da República. Representantes do setor reconhecem que o pleito tem poucas chances de avançar. Segundo a Associação Nacional de Livrarias (ANL), desde a década de 80, parte da Europa adota uma política regulatória de preço para os lançamentos, aplicando um desconto máximo de 5% sobre o preço de capa. O presidente da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), Ricardo Leitão, mostra que é possível seguir em frente em meio à tormenta. A Cepe está completando 10 anos em 2018 com um robusto catálogo de 340 títulos neste período e 11 lançamentos apenas este mês. É a editora oficial que mais publica livros no Brasil. Leitão diz que publicar é uma espécie de “missão” para o editor. “Os livros representam a menor parcela do faturamento da Cepe (menos de 4%). Mesmo assim, investimos em relançamentos de títulos clássicos e novos autores. Pernambuco tem atualmente 15 editoras, apesar deste cenário difícil para o mercado.”

Leitão diz que o segmento livreiro tem que se reinventar, tanto em termos de gestão, como não dando às costas às novas tecnologias. “O setor de comunicação todo está se reinventando”, conclui. Ele admite que o livro custa caro para a maioria da população, mas acredita que um preço mínimo só é possível com o subsídio do governo, embora a Cepe tenha orçamento próprio. Aponta que a publicação de edições com matérias-primas mais baratas também é uma saída.  A necessidade de formar novos leitores é uma preocupação de todos os entrevistados ouvidos nesta reportagem. Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, mais da metade da população brasileira se considera leitora, embora leia menos de cinco livros por ano. A Bíblia é o preferido. Ainda segundo a pesquisa, 30% dos brasileiros adultos nunca compraram um livro

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