O impasse demográfico chinês

fevereiro 11, 2018.

As comparações entre China (1,4 bilhão de habitantes) e Índia (1,32 bilhão), após quatro décadas de políticas demográficas radicalmente distintas, são inevitáveis. Na faixa da população economicamente ativa – 15 a 60 anos – estima-se que em 2040 a média etária dos indianos será de 35 anos, contra 44 da envelhecida população chinesa. Com a economia em ruínas após a revolução cultural de Mao Tsé Tung, no fim da década de 1970 Deng Xiaoping, o criador do capitalismo de Estado chinês, implantou a política do filho único (vide https://mundoseculoxxi.com.br/2018/02/05/china-um-ou-dois-filhos/0) que já evitou 400 milhões de nascimentos. Como seus efeitos se mantém no longo prazo, estima-se que até 2060 o total, principalmente de mulheres, chegará a 1 bilhão de pessoas não nascidas. Desde 2015 a aposta do governo é de uma nova explosão demográfica graças à atual política de 2 filhos por casal. Na prática, em 2016 houve um aumento de 8% no número de nascimentos acrescentando mais 1,3 milhão à população total, mas mesmo com o aporte previsto de 30 milhões de pessoas nos próximos trinta anos o país permanecerá abaixo da taxa de reposição que é de 2,1 filhos por mulher.

Não há dúvida quanto às causas do desastre demográfico provocado por quase quatro décadas de controle populacional em massa: aborto forçado seletivo de meninas facilitado pelas autoridades de saúde, acesso a exames baratos de ultrassonografia para detectar o sexo do bebê no começo da gravidez, eliminação (ou abandono e não registro) de nascidos vivos do sexo feminino, preferência dos pais pelo filho homem que os cuidaria na velhice, ao passo que as meninas deixariam a casa ao casar. Agora é muito difícil uma correção de rumo efetiva. Nas últimas décadas um acelerado processo de urbanização fez com que mais de 300 milhões de chineses migrassem para as cidades rumo às capitais de província ou para o sonho de consumo das cintilantes novas metrópoles. Mas pelo sistema do Hukou a autorização para residência, controlada pelo Partido, é restrita. O resultado é que, na espera, os migrantes ficam à deriva sem subsídios para educação, saúde e habitação, tendo de optar entre custear estas despesas ou voltar para a zona rural onde empregos são cada vez mais escassos. Enquanto isso, os padrões de consumo de alimentos e o modo como são fornecidos, preparados e servidos mudaram. Agora, ao invés de arroz, grãos e vegetais, puxados pela modernidade os jovens cada vez mais querem carne, frutos do mar, laticínios, ovos. Como as fontes de produção não se adaptam na mesma velocidade, o apelo a produtos importados cresce de modo explosivo, favorecendo grandes exportadores norte-americanos e também brasileiros, australianos, tailandeses, canadenses, argentinos.

A conseqüência mais aguda, já considerada como o problema social número um do país, é o imenso contingente de solteirões compulsórios – os Guang Gun, homens jovens que não conseguem parceiras. Os de pior aparência, pobres, sem cultura, pouco sociáveis, residentes em pequenas localidades do interior, são naturalmente menos competitivos. Já as mulheres cada vez mais optam por não casar ou por retardar ao máximo o casamento, pois querem consolidar-se economicamente. Benefícios sociais limitados – 4 meses de licença maternidade para a mãe e 2 semanas ou nada para o pai, além da escassez de creches – contribuem para diminuir a vontade dos casais de terem mais filhos.

No milagre chinês que se firma no século XXI, Xi Jinping (Secretário-Geral do Partido Comunista Chinês – PCC) em 2012 prometeu dobrar a renda familiar da população em uma década. Os chineses podem e devem ganhar dinheiro, mas não podem nem devem protestar. Analistas ocidentais ao imaginar que os solteirões poderiam desestabilizar a estrutura política chinesa, por se isolarem em grupos de iguais e serem teoricamente mais propensos ao consumo de álcool, drogas e ao envolvimento em crimes, ignoram a imensa influência do PCC que, segundo informe do seu 19º Congresso Nacional, em 2016 tinha 89,4 milhões de membros com 4,5 milhões Unidades de Base, controlando rigidamente a vida da população em cada vila, fábrica, comércio, clube ou associação país afora.

O Guang Gun Jié, ou Dia dos Solteirões, é uma brincadeira dos chineses que “pegou” e é comemorado a cada dia 11/11 (o número 1 representa o indivíduo só). Não se tem notícia de que exista alguma organização lutando por seus direitos. Contudo, multiplicam-se os sites (na China e em países vizinhos) oferecendo vantagens para mulheres que queiram unir-se a homens sós. Outra tendência recente são os sites dedicados a localizar pais biológicos de filhas abandonadas (ou doadas) após o nascimento durante o período de vigência da política do filho único.

O problema é mais severo na China rural, onde permanece 47% da população, e em províncias empobrecidas do sudoeste como Yunnan e Ghizou (fronteira com Mianmar, Laos, Vietnam), regiões que ainda esperam pelos benefícios das reformas econômicas.  Nelas, cada vez mais solteirões buscam a companhia de outros solteirões para afogar suas mágoas. (VGP)

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