As viúvas de Vrindavan

março 25, 2016.

[caption id="attachment_2827" align="alignleft" width="300"]Trem de peregrinos deixando a cidade de Mathura, na Índia, onde foram adorar a Krishna (26/7/2010) 2010  Hindu devotees travel on the roof of a train after participating in Guru Purnima Festival in Mathura, India, July 26, 2010. Guru Purnima Festival is celebrated by paying tribute to teachers by disciples or students. (Credit Image: © Xinhua/ZUMApress.com) Trem de peregrinos em 26/7/2010 deixando a cidade de Mathura, na Índia, onde foram adorar a Krishna durante o Festival Guru Purmina (Image: © Xinhua/ZUMApress.com)[/caption]

No início eram só as quatro castas básicas: os brâmanes no alto da pirâmide; os xárias que reúnem os militares, profissionais liberais e altos funcionários; os vaixás, concentrando os comerciantes e os sudras, empregados, artesãos e camponeses. Aos poucos uma imensa rede de laços e privilégios familiares entre os mais ricos, mas também entre os pobres, deu origem a pelo menos 3 mil castas e, abaixo delas, aos dalits (harijans – as crianças de Deus para Gandhi), ou sem casta, intocáveis cuja sombra ou hálito poluem  e que hoje já são 167 milhões – pouco mais de 16% da população total da Índia.

Vieram os tempos modernos, a abolição apenas formal do sistema de castas, a tecnologia e os vários saltos econômicos que de um lado transformaram a Índia em um dos países mais ricos do mundo atual, mas de outro lado perpetuaram a extrema miséria sempre baseada e permanentemente reforçada pelas amarras religiosas. No hinduísmo, o que vale é o karma, a alma de cada um que o deixa na morte e permanece vagando até encontrar em quem se reincorporar. Esta é, no fundo, a única forma perfeita de mobilidade social, pois através de uma vida sem pecados é possível renascer numa posição, ou casta, superior (ou, se tiver cometido muitos erros, numa inferior. Se você for um porco, talvez nasça de novo como um porco). A alternativa, afora o enriquecimento financeiro, está na mudança de religião, adotando o islamismo, o protestantismo, etc.

[caption id="attachment_2825" align="alignleft" width="300"]Escadarias (Ghats|) de Varanasi Escadarias (Ghats|) de Varanasi[/caption]

Na camada mais baixa de cada estrato estão as mulheres (assim como em todo o sul da Ásia), em posição de subordinação natural. Dentre elas, nada é pior do que ser uma viúva, subgrupo marginalizado mesmo entre as mulheres. É verdade que não são mais forçadas a morrer no ritual Sati, ou seja, consumidas pelas chamas na pira funeral do marido, contudo são condenadas a para sempre orar, vestidas de branco - a cor do luto – sem nunca terem sequer o direito ao suicídio. Nas comunidades mais tradicionais da Índia milenar, as sogras perseguem as noras impedindo que lhes nasçam filhas (querem filhos que lhes assegurarão novos dotes quando casarem). Depois, quando o marido morre, as noras se vingam expulsando-as de casa com a concordância da família, pois todos sabem que nada dá mais azar do que uma viúva. Para elas resta esmolar nas ruas ou então – para as mais jovens - a prostituição. “Eu tinha 9 anos quando fui forçada a casar com um homem de 40, disse Pingela Maiti, hoje com 85 anos. Ele morreu em pouco tempo e voltei à casa de minha mãe, como uma criança viúva. Fizeram-me raspar a cabeça e fui jogada na rua para pedir esmolas. Fugi dessa vida, peguei carona com caminhoneiros oferecendo meu corpo, dormi nas ruas e finalmente cheguei a Vrindavan, para ficar com quem é igual a mim”. Em um dos muitos abrigos (em geral construções precárias pertencentes ao governo, a igrejas e seitas, ou a organizações particulares) de quartos imundos, atopetados de mulheres, sua companheira é Rada Dasi, uma octogenária que ali vive há seis décadas.

Homens de idade avançada preferem passar seus últimos dias em Varanasi (mais ao norte, 1,4 milhão de habitantes), a “Porta do Céu”, local de acesso à vida eterna e de recomeço, reencarnação para o hinduísmo. Lá, ao final da tarde em uma das 98 ghats (escadarias), um dia serão publicamente cremados para que suas cinzas sejam lançadas ao Ganges, ao som lamuriento dos hinos védicos entoados pelas viúvas.

Em toda a Índia há 40 milhões de viúvas, cerca de 10% das mulheres do país. Vistas como culpadas pela morte de seus maridos, são abandonadas pelas próprias famílias, evitadas pelos amigos e desprezadas em suas comunidades. Na faixa de 70 anos e mais a mortalidade entre elas é 85% superior à das mulheres que têm marido vivo.

Krishna, filho de Brahma (o criador de todas as coisas), nasceu há 5.200 anos em Mathura, no estado de Uttar Pradesh, e passou sua infância no distrito de Vrindavan. As duas localidades, à beira do rio Yamuna, são sagradas para o hinduísmo. A pequena Vrindavan (72 mil moradores permanentes num país com 1,2 bilhão de habitantes), situada a 150 km da capital Delhi e a 50 km de Agra onde está o Taj Mahal, tem a maior concentração proporcional de viúvas do país. Elas são cerca de 20 mil e se espalham por toda parte, dividindo espaço com os milhares de macacos que infestam a região.

Normalmente com as estreitas ruas tomadas por uma multidão de peregrinos e por todo tipo de visitantes e adoradores de suas divindades, Vrindavan é também a cidade dos templos e pode ser livremente visitada de preferência a bordo de um riquixá puxado por alguém a troco de algumas rúpias. Os abrigos por vezes geram verdadeiras fortunas a seus donos ou às organizações que os administram. Indianos ricos, inclusive os que vivem fora do país, sentem remorsos por relegarem ao abandono as viúvas da família e para garantirem algum perdão junto a Krishna e terem chances de passarem em condições aceitáveis para outras vidas, costumam fazer doações milionárias a esses estabelecimentos que ao invés de as reverterem em benefício das viúvas, frequentemente preferem dedicar-se a aumentar o próprio patrimônio. (VGP)

Escadarias (Ghats|) de Varanasi

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