Descaminhos e novos percalços para o setor saúde

abril 23, 2015.

[caption id="attachment_1895" align="alignright" width="169"] Políticas de Saúde, uma pedra no sapato não só no Brasil Políticas de Saúde, uma pedra no sapato não só no Brasil[/caption]

Aos reconhecidos problemas acumulados pelo “sistema” de saúde brasileiro, sistematicamente referidos (nas enquetes de opinião) como uma das prioridades negativas mais sentidas pela população, acrescentam-se agora os efeitos danosos das medidas ultimamente adotadas pelo governo para o setor.

Ao escrever sobre esta questão (Pinto, V.G. - “Saúde bucal coletiva”, 6ª. edição, 2013 – Ed. Santos&GEN,  no capítulo intitulado “Organização e financiamento do setor saúde no Brasil”) já chamei a atenção para o fato de que o apartheid assistencial supostamente extinto quando a Constituição de 1988 assegurou acesso universal e igualitário a ações e serviços de saúde, de fato apenas assumiu outra forma, mantendo as mesmas iniquidades ao dividir os pacientes em três grandes blocos: os que dependem do SUS, os que possuem Plano de Saúde e os que têm recursos para pagar um médico particular. Uma verdade já antiga, originalmente aplicada às crueldades do sistema privado de saúde norte-americano e agora se tornando uma carapuça para o sistema brasileiro, é de que Plano de Saúde só é bom para seus proprietários.

O jornal O Estado de São Paulo sintetiza com serenidade e realismo, no editorial “Os erros graves na saúde”, reproduzido na sequência, o quadro atual de um setor que segue desafiando os formuladores de políticas e as diversas categorias profissionais que atuam na área. Não há como esconder a gravidade da situação. A crise econômica, sempre negada e que agora serve de desculpa para tudo, está produzindo o encarecimento dos Planos de Saúde e a tendência é de exclusão até mesmo da clientela de classe média. A ideia de favorecer a implantação de planos baratos, teoricamente direcionados à baixa renda, fracassou.

Cada vez mais as Operadoras lançam mão de artifícios como o copagamento, mecanismo invariavelmente cogitado em contextos fiscais adversos devido ao seu potencial para atuar nos dois extremos do problema: aumento da receita porque cria uma nova fonte de recursos e redução da despesa porque inibe a demanda. Nem uma coisa nem outra. O copagamento é regressivo, pois tem efeito mínimo e desprezível sobre os mais ricos e, na prática, atinge apenas os mais pobres que, coincidentemente, são também os mais doentes e os que mais precisam de cuidados regulares e de prevenção para detectar precocemente males que, deixados ao leu, trarão muito mais despesas no futuro. Enquanto isso, prossegue a tragédia do subfinanciamenteo do setor público de saúde, um fenômeno que não é de agora e sim dos anos áureos em que os excessos de arrecadação produzidos pelo boom da economia mundial, especialmente entre 2003 e 2007, nunca foram aplicados em saúde e em educação.

Leia, a seguir:

Os erros graves na saúde

(O Estado de São Paulo – Notas e Informações – pg. A3 – 22/4/2015)

O aumento do custo dos planos de saúde - mesmo os empresariais - para os usuários reabre a discussão sobre o papel que os prestadores privados de serviços devem assumir no futuro, no setor da saúde. E também sobre o papel da rede de saúde pública, pois suas notórias deficiências levaram uma grande parcela da população - hoje na casa dos 50 milhões - a procurar refúgio nos planos de saúde nas últimas décadas. Uma opção que vai encarecendo e ficando cada vez mais difícil.

Reportagem do jornal Valor mostra que as dificuldades criadas pela crise econômica já estão levando as empresas a reavaliarem os planos oferecidos a seus empregados, tanto no que se refere à participação destes nos custos de alguns procedimentos como na opção por planos de abrangência regional, mais baratos. Uma conduta que é explicada também pelo fato de esse benefício ter um peso considerável em seus custos, já que é a maior despesa do setor de Recursos Humanos. E uma despesa que dificilmente pode ser cortada, porque se incorporou de tal forma à relação empregador-empregado que faz parte de acordos sindicais.

A participação dos empregados nos custos de consultas e exames, que já existe há algum tempo, está aumentando. De 10% em média hoje, estima-se que ela deve ficar em pouco tempo entre 20% e 30%. Em consultas feitas em pronto-socorro, a contribuição do funcionário já é de 30% em alguns casos. Isso alivia a empresa, porque reduz sua participação e também porque tende a evitar o uso considerado exagerado do benefício, restringindo-o ao indispensável, o que por sua vez leva a operadora do plano de saúde a conceder desconto na renovação do contrato.

A tendência dos planos de saúde empresariais, que representam 65% do total, é de se tornarem cada vez mais caros para os empregados. E essa situação não deve mudar quando passar a crise, pois dificilmente as empresas abrirão mão dessa economia. Quanto aos planos de saúde individuais, há muito tempo que eles se tornaram caros. Finalmente, os elevados custos dos modernos tratamentos e exames médicos também encarecem os planos.

Em resumo, tudo indica que o acesso à saúde privada vai se limitar progressivamente às pessoas de faixas de renda mais altas, com exclusão até mesmo, num futuro não muito distante, de fatias importantes da classe média. A incorporação a esse setor de camadas sociais ascendentes, incentivada pelo governo federal, está se revelando, portanto, inviável.

Os últimos governos - por ironia, justamente os que mais se proclamam defensores das camadas de baixa renda - tomaram na área de saúde decisões desastradas e irresponsáveis. Apostaram demagogicamente na expansão dos planos de saúde - sem base em estudos sérios que mostrariam facilmente seus limites, como se está comprovando agora - e deixaram de investir no Sistema Único de Saúde (SUS), que atende três quartos da população, em especial os mais pobres.

Dois exemplos bastam para provar isso. O primeiro é a falta de atualização da tabela de procedimentos do SUS, que cobre apenas 60% dos seus custos. Como os hospitais filantrópicos conveniados, especialmente as Santas Casas, não tinham condições de cobrir indefinidamente os 40% restantes, acabaram se endividando e entrando numa crise que só se agrava. O socorro prestado pelo governo de tempo em tempo não passa de um remendo. E, como essas instituições respondem por cerca de 45% dos atendimento do SUS, é fácil de constatar a extrema e perigosa fragilidade do sistema de saúde pública.

O segundo é a eliminação de mais de 14 mil leitos de internação nos hospitais da rede pública, em apenas quatro anos, de julho de 2010 a julho de 2014, como constatou estudo feito pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), com base em dados do Ministério da Saúde.

O investimento na rede pública de saúde, como mostra o exemplo dos países da Europa ocidental, no qual se inspiraram os legisladores para criar o SUS, é a saída óbvia para oferecer atendimento médico e hospitalar digno à população. Urge retomar esse caminho para recuperar o tempo perdido.

Tags: [Copagamento, Planos de Saúde, Sistema de Saúde, SUS]