A maldição de Khadafi

abril 21, 2015.

[caption id="attachment_1890" align="alignright" width="300"]Migrantes africanos tentam a travessia para Lampedusa Migrantes africanos tentam a travessia para Lampedusa[/caption]

A origem próxima da atual crise dos imigrantes no Mediterrâneo remonta a 31 de agosto de 2010 quando, em retribuição a uma recente visita de Silvio Berlusconi a Trípoli, Muamar Khadafi foi a Roma para comemorar o 2º aniversário do Tratado de Amizade entre Itália e Líbia, aproveitando a ocasião para rogar uma praga que hoje, mais do que nunca, parece impossível de desmanchar. Anunciou “o perigo de uma Europa negra” dizendo: “ou me dão mais dinheiro ou se abrem as portas”. E pediu 5 bilhões de euros para continuar contendo as hordas de africanos miseráveis em seu território (ocupado de 1911 a 1943 por forças italianas), geralmente matando-os ou escravizando-os. Menos de dois meses depois a Comissária Europeia do Interior, Cecilia Malmstrom, autorizou uma verba de 5 milhões de euros para os três anos seguintes. Só a primeira parcela foi paga, pois em 20 de outubro de 2011 Khadafi tentou uma fuga desesperada pelo deserto desde Sirte, sua cidade natal, à frente de um comboio de 75 veículos que foi abatido por morteiros e mísseis franceses e ingleses.  O tiro de graça, disparado por um militante do Exército de Liberação Nacional, não respeitou o pedido derradeiro do ditador: “não me matem!”.

Seguiu-se o caos de uma Líbia dividida  e sem governo, com as costas abertas para as levas de invasores sem nome. A maioria vem da África Subsaariana – Chade, Niger, Nigéria, Serra Leoa, Eritréia, Somália, Guiné, Gana, Darfur no Sudão – para uma escala nas cidades marítimas de Benghasi, Misurata, Trípoli onde, submetidos a condições similares às da escravidão, permanecem à espera de que os coiotes digam em que barcaça ou traineira devem entrar. Feridos, velhos que fraquejam, são lançados ao mar para alimentar os tubarões. Se o Mediterrâneo permitir, se os barcos superlotados não afundarem, se a metralha da polícia costeira não os pegar de mau jeito, colocarão os pés na Sicília, na ilha de Lampedusa, quem sabe via Tunes em Malta. É preciso economizar durante anos para custear a viagem e mais ainda a travessia pelas mãos dos coiotes. Na hora agá ao verem que não há mais lugar para eles e que a barca já está saindo, alguns pais lançam suas crianças para que caiam no meio dos que conseguiram embarcar, na vã esperança de que seus filhos sobrevivam e tenham um futuro melhor.

Há muitas causas para o êxodo de milhares no norte, centro e ocidente da África: a fome, uma temporada especialmente agressiva de mudanças climáticas com secas agressivas e intermináveis, as guerras islâmicas e acima de tudo a ganância dos contrabandistas e traficantes de gente. A melhora do clima nesta primavera convenceu a todos de que deviam tentar agora ou nunca. Neste domingo quando a barcaça com mais de 800 “passageiros” deixou a costa da Líbia o mar estava calmo, mas rapidamente o tempo mudou. Feitores mantinham os migrantes engaiolados no porão e no momento do naufrágio não houve como escapar. Fala-se em até 700 pessoas afogadas (ali perto, outras 400 afundaram no dia seguinte), superando o recorde de até então: as 366 vítimas frente à costa de Lampedusa em outubro do ano passado. Embarcações italianas resgataram cerca de 11 mil migrantes só na última semana, mas este ano passa de mil o número de mortos  no Mediterrâneo. A Operação Mare Nostrum custeada pela Itália salvou a vida de 100 mil pessoas em 2014. Já a Operação Triton da União Europeia que a substituiu com visão policial, limitou-se até aqui a trazer 5 mil para terra. A Lampedusa (205 km ao sul da Sicília e 113 km da costa africana) é possível chegar em 3 a 4 dias de navegação, mas é preciso não naufragar e ser aceito pelas autoridades portuárias. Matteo Renzi, o 1º Ministro italiano, no encontro com Obama na semana passada observou, com razão, que o Mediterrâneo é um mar e não um cemitério.

Um pouco mais acima a pressão se repete nos limites da Grécia, pelo mar sobre as ilhas a noroeste do Egeu – Samos, Lesbos, Leros, Quíos – fronteiriças à costa turca, e por terra na estação ferroviária de Idomeni que, na divisa com a Macedônia, assiste a invasão diária de refugiados da guerra da Síria e do Iraque, além dos que fogem do Paquistão ou de Bangladesh. Viajam, depois de cruzarem a fronteira da Turquia, até em baixo dos vagões com o sonho de atravessar a Sérvia para entrar na Hungria, o país da comunidade Europeia economicamente melhor situado na região. A viagem desde os Balcãs até o coração da Europa não é barata: uns 1.800 euros de trem e 3.000 euros de barco, sem qualquer garantia de sucesso.

A tragédia agora se repete diariamente. Duzentos mil estão empilhados em acampamentos concentrados no litoral da Líbia, desesperados por enfrentar uma travessia que, de qualquer maneira, lhes dá algo entre 90% e 95% de chances de sobrevivência. A União Europeia, sob intensas críticas à sua passividade, dobra o apoio financeiro à Operação Triton e quer controlar os piratas. A demora em agir fortalece o ódio aos imigrantes inoculado pela propaganda dos partidos de extrema direita, enquanto os de esquerda – ligados a causas populares por tradição – têm se manifestado com assustadora timidez. É urgente uma política abrangente de imigração para o Mediterrâneo e a salvação política e social da Líbia, um Estado falido que sem dúvida necessita um milagre para recuperar-se, além de muito incenso e sal grosso para anular a mandinga aplicada por Khadafi.

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