Palavras ao vento

fevereiro 11, 2014.

Promessas em programa de governo: palavras ao vento

 O ano de 2014 é de eleições em sete países latino-americanos e, segundo os costumes locais, à medida em que a data do pleito se aproxima mais e mais os eleitores e os militantes são inundados com propostas e promessas de “programas de governo”, cada qual mais mirabolante do que a outra, mas com a característica comum de que não se destinam a ser cumpridas. Nesta categoria se inserem as prioridades para o período 2011 – 2014 estabelecidas no documento “Mais saúde para o Brasil seguir mudando com Dilma” que oportunamente André Médici fez questão de recuperar na edição deste janeiro do Monitor de Saúde[1].

Os treze pontos formulados pelos técnicos do Partido dos Trabalhadores constituem, na verdade, um conjunto de noções gerais acompanhados por uma listagem de programas específicos desenvolvidos pelo Ministério da Saúde, em relação aos quais praticamente inexistem discordâncias. Quem seria contrário, por exemplo, à inclusão de um tópico de “prevenção e promoção da saúde” (nº 1), “ampliação do acesso aos serviços de saúde (nº 2) ou à “melhoria da infraestrutura” (nº 7)? Não obstante, para quem está nas frentes de trabalho, costuma ser essencial “estar dentro”, ou seja, constar no rol de prioridades. Assim, mostrando sua força interna, curiosamente lá está, ainda, a “humanização” dos serviços, mesmo que após vários anos não tenha sequer conseguido reduzir as filas que madrugadas afora serpenteiam no lado de fora das unidades de saúde do SUS. Um outro campo de larga tradição no país, a saúde mental, que ao longo do século XX acumulou conquistas impressionantes nas lutas pelo fim dos manicômios e pela desospitalização de pacientes, ganhou surpreendente realce, mas se viu consumido pela ênfase quase absoluta no combate ao uso do crack.

Em outros destaques, o programa sublinha iniciativas que deveriam, efetivamente, constituir-se em pilares de sustentação da política setorial daí em diante: melhoria da infraestrutura, financiamento compatível com o desenvolvimento econômico e social da nação, mais profissionais e regulação do estado brasileiro, naturalmente naquilo que é do interesse setorial.

Respeitados especialistas no ramo retratam com franqueza o que hoje acontece, ou seja, a que essas prioridades nos conduziram. Nelson P. dos Santos[2], por exemplo, diz que “a grande maioria das 45 mil unidades básicas de saúde estão em más ou péssimas condições prediais e de equipamentos. A insustentável precariedade das condições de trabalho em saúde e a ausência de concursos públicos e carreiras sérias e atrativas faz com que mais de 60% do pessoal esteja terceirizado ou sob contratos temporários em regra aviltantes.”  Atendendo a demanda forçada pela nova Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), a Prefeitura Municipal de São Paulo[3]  divulgou a lista completa dos pedidos médicos reprimidos na rede municipal em 31 de dezembro de 2012, com 800.224 registros na fila por atendimento, seja na área de exames, consultas com especialistas ou mesmo cirurgias. Na média, o tempo de espera era de 8 meses.

É inegável, por outro lado, que em seu quarto de século de existência o SUS assistiu a extraordinários avanços, como destacam Gragnolati e outros[4]  em um estudo específico sobre o SUS ao referirem que o número de consultas médicas cresceu 70% entre 1990 e 2009, sendo acompanhado pelo declínio das distinções geográficas traduzido pela maior utilização dos serviços nos estados mais pobres, mesmo que notando a persistência de notáveis disparidades entre os decis superiores e inferiores de renda. Concluem afirmando que nessas duas décadas o Brasil tem assistido a melhoras significativas nas condições de saúde, com reduções dramáticas na mortalidade infantil e aumentos na expectativa de vida, ainda que tais efeitos só em parte se devam à performance do setor saúde. Em 2012 o Sistema foi capaz de realizar 537 milhões de consultas médicas e 11 milhões de internações hospitalares[5] para uma população de 194 milhões de habitantes.

Os problemas crônicos do subfinanciamento dos serviços públicos de saúde não encontraram encaminhamentos ou soluções positivas, ao contrário do que se esperava, ao longo dos últimos onze anos. O país destina 7,9% do PIB para a saúde, mas apenas 47% desse total é proveniente do setor público. Recentemente, fracassou uma nova tentativa de aumentar os recursos setoriais, quando uma ampla frente de instituições chegou a coletar 2,2 milhões de assinaturas em apoio a Projeto de Lei de Iniciativa Popular destinando 10% da Receita Corrente Bruta da União para o setor saúde[6]. Encaminhado ao Congresso Nacional o pleito enfrentou, como de costume, fortes resistências do setor financeiro (Ministérios da Fazenda e do Planejamento e Casa Civil).

Castigado pela condenação pelo Supremo Tribunal Federal, no processo de desvio de recursos públicos conhecido como Mensalão, de alguns dos mais altos dirigentes do Partido dos Trabalhadores, o governo foi surpreendido em junho de 2013 por movimentos espontâneos de massa que levaram milhões de jovens, a maioria de classe média, às ruas do país. Pesquisa do IBOPE divulgada ao final do mês seguinte, constatou que a avaliação de “ótimo e bom” do governo Dilma Rousseff teve queda de 63% para 31%, ao ser comparada aos índices de março. Já o item “ruim e péssimo” saltou de 7% também para 31%, o que foi interpretado como um efeito imediato do chamado Grito das Ruas e como um desgaste dos dez anos do partido à frente da política nacional[7]. Na análise por setores específicos, o pior resultado em termos de desempenho, na visão da população, foi o da saúde, assinalado por 71% dos entrevistados (segurança pública foi citada por 40% da população, seguida dentre várias outras áreas pela educação com 37%).

Com dificuldades e incapaz de enfrentar os crônicos problemas de infraestrutura, gestão e financiamento acumulados pelo Sistema Único de Saúde, o governo, desejoso de oferecer respostas de impacto e de curto prazo, optou por dar viabilidade ao oitavo dos 13 pontos do programa formulado em 2011, referente a “profissionais necessários à saúde dos brasileiros”. Tratou, assim, de dar cumprimento a acordo firmado pelo ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, com o governo cubano, e em tempo recorde contratou (até dezembro de 2013) 5.400 médicos da ilha do Caribe para atuarem em localidades distantes e nas periferias das cidades médias e grandes brasileiras, nas quais os profissionais nacionais não aceitaram trabalhar, mesmo sob remuneração mensal elevada para o equivalente a U$ 4,200.00 mensais (no caso dos profissionais cubanos, a remuneração no Brasil corresponde a cerca de 10% deste valor, com o restante sendo pago ao governo do seu país). O novo programa, conhecido como “Mais Médicos” foi bem aceito pelas comunidades que passaram a ter acesso regular ao atendimento médico, e se tornou o principal mote na campanha do ministro Alexandre Padilha para o governo de São Paulo, o maior estado brasileiro e um dos poucos ainda nas mãos da oposição.

Por último, vale referir o discurso relativo à regulação do sistema de saúde, destacado como o 12º dos 13 pontos acima referidos. A ausência de um eficaz modelo regulatório, especialmente das ações do setor privado, é o fator mais diretamente responsável pelo que se pode considerar como um Não-Sistema brasileiro de saúde, caracterizado pela falta de integração entre os seus múltiplos componentes. Este problema não é novo. Ao contrário, faz parte intrínseca do modelo aberto de administração e de prestação de cuidados à população. Em 1988, na criação do SUS, tendo sido politicamente impossível estabelecer normas claras de funcionamento para o setor privado, este ficou livre para crescer ao sabor do mercado e hoje o subsistema de Saúde Suplementar já se expandiu ao ponto de proporcionar Planos de Saúde para mais de 49 milhões de pessoas, o que torna a regulação ainda mais essencialmente necessária.

Palavras ao vento é do que menos os brasileiros precisam neste momento. Espera-se que diante do novo período administrativo 2015-2018 que se inicia no próximo janeiro tenhamos pelo menos promessas quantificadas, com objetivos e metas compreensíveis que permitam, inclusive, responder à pergunta de que modelo de divisão de atribuições entre os setores público e privado será adotado para a saúde deste país.


[1] Médici, A. – Os 13 pontos: um convite paraavaliar as políticas de saúde de 2011-2-14. Monitor de Saúde. Washington, D.C., 26/01/2014. Disponível em: monitordesaude.blogspot.com.br

[2] Santos, N.R. – Financiamento da saúde: receita corrente bruta x receita corrente líquida. Em: ANTC, Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil. 7 Dezº 2013. Disponível em: https://www.controleexterno.org/?secao=noticias&visualizar\_noticia=196

[3] SP tem 800 mil pedidos medicos na fila de espera. Estadão, 28/2/2013. Disponível em: https://www.estadao.com.br/noticias/impresso,sp-tem-800-mil-pedidos-medicos-na-fila-de-espera,1002490,0.htm

[4] Gragnolati, M., Lindelow, M. e Cauttolecn, B. – Twenty years of health system reform in Brazil: na assessment of the Sistema Único de Saúde. The World Bank. Washington, D.C., 2013. Disponível em https://dx.doi.org/10.196/928-0-8213-9843-2

[5] RIPSA – Indicadores de Dados Básicos, Brasil, 2012. Rede Interagencial de Informações para a saúde. Brasília, 2013.

[6] Abrasco, Cebes, Abres, IDISA, Ampasa - O Movimento Saúde + 10 e a luta pelo financiamento adequado para o SUS – Manifesto de 7 Setº, 2013. Em: https://www.observasaude.org/sugeridas/files/o-movimento-saude10-e-a-luta-pelo-financiamento-adequado-do-sus.html.

[7] População avalia saúde como o setor de pior desempenho governamental. Pesquisa IBOPE, 26/7/2013. Disponível em: https://www.observasaude.org/noticias/files/ece8460bf6df9d8fd83a036da0e406d5-6.html

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